BLECAUTES

tudo tem mudado à medida que cresce nossa dependência da eletricidade

porque meu pai dormia às sete e acordava às seis porque nada havia além do sol

e porque também mais nada havia quando o rádio victor era o topo da modernidade

quando se ouvia mas não se via o futebol.

e, segundo me contam, coisas hoje tolas como paisagens e relâmpagos eram cinema

e as pessoas paravam e apontavam pro céu cada vez que viam um vickers da vasp

comentando entre si a beleza e o mistério que envolviam aquele espantoso sistema

de se manter toneladas de metal acima de suas cabeças sem o uso de um guindaste.

tudo tem mudado à medida que cresce nossa dependência da eletricidade

porque já não tememos mais as assombrações que habitavam os corredores

de nossas casas durante à noite quando um copo d´água tinha sua acessibilidade

comprometida pela presença do espectro de um ente querido e seus batedores.

porque alguém de casa uma vez me disse que escrevera lindas cartas à luz de velas

protegido pela penumbra encorajado a escrever tudo o que lhe saísse do peito àquela hora

pois como mal se enxergava também não havia o pudor de omitir coisas puras e belas

de quando não se tem medo de dizer e quando a circunstância colabora.

tudo tem mudado à medida que cresce nossa dependência da eletricidade

porque não conhecemos ninguém que não esteja ligado à tomada

por um fio tão curto que lhe reduz drasticamente o sentido de realidade

resumindo a vida a uma pequena cabana por aparelhos assombrada.