Raiva encanta os poros.
Minha raiva sacia, afrouxa, amálgama,
deixa o ar ficar menos garrado, o seco menos frio,
deixa a mão mais fecunda, mais menina, menos reclusa.
Minha raiva desmata, descabela, sorri, diz,
faz o pisar ficar mais fértil e cheiroso.
Minha raiva encanta os poros, os rios, a luz, a teta macia,
aponta para o arco-iris com feito erguido.
Minha raiva arrasta, incrusta, imanta, aporrinha,
esburaca a terra, embriaga a volta, seduz.
Raiva é gole morno, galope esperto, espirro salvador,
refaz algemas, salga o medo, assusta o juiz.
Das raivas que tive poucas ainda relam,
poucas ainda vêm beijar minha mão,
poucas ainda são crias que reconheço e apeteço.
Raivas demitem o rei, descabelam as certezas,
fazem a dor bailar feito gazela atrás do primeiro prazer,
fazem a verdade sair de fininho e nunca mais dar as caras.
Raivas são dóceis, esquisitas, sumárias,
reconheço todas quando me faço decente, avesso e até feliz,
então esqueço dos amores esquerdos, essas loucas canecas pedindo que as encharque até se fartarem de mim.
Mas não: de cada raiva torta e vadia só essa farei minha,
justamente aquela que, por certo, me fará dela pra sempre.
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