Vertentes contemporâneas
Os óculos do meu avô estão caindo,
Descem pelo rosto suas lentes temporárias.
Suas mãos operárias e lúcidas escorregam
Acenando de longe para todos nós
Como um navio descendo a correnteza do rio
Em direção da sua ilha interior.
Suas rugas escondem tesouro milenar
Enterrado por quem acostumou a esconder seus valores
Incluindo os valores pessoais e cívicos.
Lá se vão os óculos e o navio corporificado,
Levando na bagagem o tempo do seu coração
E o coração do seu tempo.
São tantas as ilhas e tantos os tesouros
Que meu pai ficou à deriva,
Ficou como quem soubesse de algo muito importante,
Algo capaz de transformar o curso das águas,
Que devolvesse ao corpo as rugas passadas e lisas.
Suas mãos operárias chegaram cedo à guerra,
Não dormiram o suficiente, ou dormiram bastante,
Não se decidiram ainda, ou fizeram questão do silêncio,
Fazendo com que as respostas sejam as perguntas feitas
Uma forma de defender atacando nas entrelinhas da história,
Nas sombras das vírgulas,
Para que a luz das gerações faça uma análise mais clara
Sobre a sua bagagem.
Com as mãos operárias cheias de ônibus
Entro no mar decidido a desenterrar os tesouros
Principalmente os de valores pessoais e cívicos.
Meus dias são árvores pequenas
Que aprenderam a dar frutos para manter-se viva.
Tenho um pouco de arte na bagagem,
Minha mãe colocou um “fuzil” em minhas mãos,
Em nome de todas as mães que não acreditam mais em nada
Que desistiram de perseguir manhãs inexistentes
Para colocar os olhos em dias reais.
Eu ainda não desisti daquelas manhãs
Mas aceitei o “fuzil” como complemento da minha esferográfica.
Assim partem os navios atrás de suas ilhas.
Quero poder ser analisado pela luz de dias futuros
Dias que tragam respeito aos valores pessoais e cívicos
De quem, com certeza,
Já é por mim muito querido e próximo.
Ricardo Mezavila - 1982