O PRÍNCIPE E O BARDO
 
                              I  - (O príncipe)
 
Eu sou a história de um príncipe
Que não quis ser rei; não, não quis!
Não quis abdicar do principal
E deixou que a realidade se delisse.
Conhecem-se príncipes nascidos de rei
E rainha, com compromissos com o real
E grandes pompas nas suas chegadas
E arautos alardeando por todo o reino;
Príncipes que habitam castelos
Encantados ou tristemente enfadonhos;
Príncipes de bailes de gala e princesas
Decotadas, vaporosas, ao minueto.
“O rei está morto.  Viva o rei!” –
Aí também desaparecem os príncipes

E a História marcará os soberanos.
 
Conhecem-se príncipes que nascem
Na corola de uma flor-de-lis
Ou na distância insuspeita de uma estrela,
Na solidão mesma dos heróis;
Príncipes que cavalgam ginetes
Magníficos; que voam, alçados por cisnes.
Conhecem-se príncipes airosos,
Empunhando com denoto o espadim,
Ou garbosamente vestidos à espanhola,
Mas não se conhece o príncipe seminu
Que eu vim a ser.  Iniludivelmente,
Pouco se sabe da minha ascensão.
Príncipes não nascem, mas principiam –
Um dia concebe-se príncipe e. . .  pronto!
“Bufo erit princepem” –
O sapo será príncipe.
 
Eu sou a história de um príncipe
Que jamais quis ser rei,
Por não se simpatizar visceralmente
Com o que há de decurso consensual
Na vida para as coisas reais.
Reis têm cetro e coroa e mandam;
Príncipes têm anelos e brincam.
Reis têm poder de vida e de morte;
Príncipes buscam a semente da vida.
Reis mandam, mas não podem decretar,
Por absurdo que saberia, ser humano.
 
Se eu pudesse escrever o mito
Sim, que a minha vida foi um mito,
Inteiro iria provar que fui autêntico;
Provaria que houve nexo, e bom,
Em todas as faltas de nexo.
Talvez eu esteja enganado,
Mas na vida de todo príncipe
Sempre há um bosque encantado –
Ali busca ele a fonte da inspiração,
E o coelho, o raposo, o esquilo,
Terão sido, na sua sempiterna juventude,
Os seus amigos mais diletos.
Nesse bosque, as horas seguem leves;
Seguem, como se não seguissem.
 
Príncipes não nascem; porém, fenecem
Pela falta de uma dimensão própria,
Eis que o mundo glorifica os soberanos
E malversa na edição de uma plebe
Indistinta, contudo, a sua razão de ser;
Ou invertidamente glorifica a edição
De plebes rudes, materiais, esfaimadas,
Alimárias, sem azo para o principal,
E malversa em imperadores bramantes,
Descompassados de tempo, de ideal,
De sensibilidade para o que não seja real.
Mas aqui o príncipe, destarte, pontifica,
Pois conhece os pesares de ser tudo
De tudo e de ser nada de nada.
Não é exato que se principie por livre arbítrio,
Sem a escalada de pungentes humanidades,
Sem que se pague um preço de alma,
Sem que haja a vivência intrínseca da dor.
 

A vida seria difícil apenas,
Se nós não a complicássemos.
Príncipes buscam não só por princípios seus,
Mas pela essência de tudo o que tenha aura,
Pelo traço imarcescível das primícias,
Pelas lendas patentes a seres humanos;
Eles aprendem que alma é aquilo que fica
Quando tudo o mais passa; e passa, mesmo.
No fundo, todos os vazios são iguais,
Todas as dores têm a mesmíssima raiz.
Umas doem menos, outras doem mais,
Mas, no fundo, todas as dores são iguais.
 
Não basta que se principie – uma iniciação,
De irretocável conduzir espiritual, é mister.
Quem a guiar quem bebeu da pureza dos regatos
E dormiu do sono solto à sombra dos carvalhais
E compartilhou da alvorada com os animais
E viu a vida como um diamante nas mãos
(não em uma coroa) e, rindo, com ele brincou?
Quem a conduzir quem aprendeu a caminhar
No labirinto do bosque, nas trilhas dos montes,
Ou meramente correndo ao temeroso esquilo
Ou chapinhando pelas fraldas do mar remanso?
Quem a ensinar os nomes das constelações,
Se as estrelas são olhos e almas de amadas
E com inolvidáveis poéticos nomes próprios?
Quem a ensinar os mistérios do fogo
A quem, confiante, pediu à intrépida labareda
Que levasse os seus anseios a Deus no Céu?
Ensinar que o fogo queima um país e o destrói?
Não!  O fogo é vida e vida, se dela não se cuida, dói.
Instruções na Política, na Estratégia,
Na Diplomacia, na Legislação,
Na rotina palaciana, no protocolo;
Mas isso são coisas de gentes alheias a gentes
Que olham os céus como fronteiras da alma,
Que olham os mares como desafios do sonhar,
Que olham os campos como berço da Vida,
Que olham os bichos como irmãos de sangue,
Que olham as gentes como dádivas de Deus.
Quem a ensinar que o Espírito Supremo é aqui,
Bem no fundo do coração, pleno e sutil, simples
E exequível, sagrado e imensamente nosso?
Quem a ensinar que a vida é uma donzela
De sublimes simpatia e generosidade

E que responde ao sorriso que lhe dedicamos?

Publicada esta em homenagem ao aniversário de meu primogênito, também homem das Letras.

Em 1995 eu compilei os meus poemas em um tomo designado “Poema”, que colecionava tudo escrito até então – grande parte deles está publicada nesse “blog”. Na sequência, imaginei criar um segundo tomo, que iniciou com o título “Viagem ao País dos Seres Humanos”, não concluído, mas contendo poemas também publicados aqui – a ordem não era importante; alguns eram mais longos e laboriosos e entre esses eu menciono “O Príncipe e o Bardo”.

Tal poema foi concebido em três partes: na primeira, objeto desta publicação, o príncipe, protagonista do poema, se apresenta. Na segunda parte, ele apresentaria o bardo e, na terceira, ele relataria o que resultou do encontro entre ambos.
Curiosamente, mas não sem razão, a segunda parte se mostrou difícil: escrita em parte, eu não consegui ir adiante. A terceira parte nunca foi iniciada.
Ora, eu sou um psiquiatra de inspiração junguiano-arquetípica. O príncipe, como o herói-protagonista (e fala na primeira pessoa), representa o ego, o arquétipo central da consciência. O bardo, arquetipicamente, representaria o “self”, o arquétipo central da totalidade psíquica (muitas vezes representado pelo rei ou por um velho sábio). Como eu não tenho a genialidade de um Castro Alves ou de um Fernando Pessoa, assim como a de outros tantos poetas, de obras geniais, que “partiram tão cedo desta vida, descontes” (Camões, Sonetos: “Alma minha gentil...”), eu não me cobro maturidade poética em minha idade – paciência, meus irmãos, paciência!
O fato é que ainda não tenho o poema concluso, mas isso não me impede de publicar a primeira parte, a qual já é assaz longa. Fico devendo a conclusão e posterior publicação do restante, “se a tanto me permitir engenho e arte” (Camões, Os Lusíadas).