Do Avesso Arremesso

Do Avesso Arremesso





Trouxe consigo coisas que vinham desde antes de antes
do início da borda do próprio tempo. Algumas, ungüento. Até doenças trouxe, tudo enfiado num saco, pra jogar dentro da pira, depois de subir os degraus. Chegando ali ajoelhou, murmurando:

Pelo muito eu agradeço
Pelo sim eu aquiesço
Noutras horas adormeço
Bem no fim um recomeço
Nesta curva um tropeço
Pelo não eu reconheço

Pasmou-se estagnado, admirado com o agir do fogo que o todo consome, tudo some, até lembranças de velhas andanças jogou ali, e então de pé, declamou:

Se vem de longe eu estremeço
Cá de perto eu amanheço
Parti sem endereço
Com seu olhar amadureço

Curvou-se um momento, foi um susto a visão de um parasita enroscado numa viçosa planta, sugando-a, drenando-a, até ambos se extinguirem.
Recuou pálido, e disse ligeiro:

Eis a vida, um adereço

Recompôs-se depois de um súbito mal estar, o fogo se transformara em cinzas, seus olhos num vagar, sua sacola enfim vazia, à frente uma escada que de tão delirante, cintilante.
Pôs-se a subir olhando o céu, cantarolando:

Não sei com quem me pareço
Logo agora entristeço
Logo após me aborreço
Pelo pouco eu agradeço
Mais adiante me esqueço
Sem você, enlouqueço.
Por que?


Porque, quando alguém não se reconhece, o Espírito também não o reconhece.



(Imagem: Kamisaka Sekka, 1866-1942)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 20/07/2014
Reeditado em 04/04/2021
Código do texto: T4889142
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