ISSO É AMOR

Ali mesmo, na parede,

a ampulheta antiga mostra em amarelos de latão

outras faces do tempo.

Fala de quando havia tempo,

e mãos disponíveis para virá-la.

Disponibilidade para o sentimento.

Luz de velas, nos castiçais dourados.

E os sons, cheiros e sabores

que, hoje, são de época...

Baixinho, um cravo tocando, tecnológico,

envolve-me como um beijo lento,

e a noite, lá fora, querendo impôr-se,

aprofunda-se, argumentando brilhos.

Falta-me uma bebida forte,

e uma pena grande, vermelha,

na mão suja de tinta,

saindo duma manga pregueada,

obscenamente alva,

eternamente elegante...

Do lado da ampulheta, severo,

um astrolábio também brilha,

em cânticos de latão e charme

feito de memórias...

Por detrás do cravo, insuperável,

conta-me das ondas antigas

e dos horizontes cinzentos do mar.

Das alturas do astro-rei

anotadas nos pergaminhos,

em sons crepitantes de escrita,

e arranhados de pena, insubstituíveis

neste contexto de memórias

confortáveis, quase minhas.

Mais além,

os meus cachimbos raros

olham-me em ardumes de língua,

dispostos a esperar,

condescendentes,

crendo-me servil...

E eu aqui, de mãos crespas

nos gestos da escrita,

vendo-me em todas as histórias

que compõem a minha história,

em repetições inevitáveis de anseios,

e ínfimos afagos doloridos,

íntimos como pequenos desconfortos...

Falta-me mais, muito mais,

do que essa bebida forte.

Falta-me o ritmo forte da África,

em dialetos , ao amanhecer.

Falta-me o silêncio dos peixes,

em cores distorcidas

no vidro líquido.

Faltam-me as velas,

e o vento caçado,

fazendo força contra a cana do meu leme.

E o deslocamento sem som

espirrando salpicos salgados,

nos meus olhos focados longe.

Tão longe,

que a saudade não é isso ...

Isso é amor !

( texto reeditado, de 2008 )

Henrique Mendes
Enviado por Henrique Mendes em 25/06/2014
Código do texto: T4857626
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