ISSO É AMOR
Ali mesmo, na parede,
a ampulheta antiga mostra em amarelos de latão
outras faces do tempo.
Fala de quando havia tempo,
e mãos disponíveis para virá-la.
Disponibilidade para o sentimento.
Luz de velas, nos castiçais dourados.
E os sons, cheiros e sabores
que, hoje, são de época...
Baixinho, um cravo tocando, tecnológico,
envolve-me como um beijo lento,
e a noite, lá fora, querendo impôr-se,
aprofunda-se, argumentando brilhos.
Falta-me uma bebida forte,
e uma pena grande, vermelha,
na mão suja de tinta,
saindo duma manga pregueada,
obscenamente alva,
eternamente elegante...
Do lado da ampulheta, severo,
um astrolábio também brilha,
em cânticos de latão e charme
feito de memórias...
Por detrás do cravo, insuperável,
conta-me das ondas antigas
e dos horizontes cinzentos do mar.
Das alturas do astro-rei
anotadas nos pergaminhos,
em sons crepitantes de escrita,
e arranhados de pena, insubstituíveis
neste contexto de memórias
confortáveis, quase minhas.
Mais além,
os meus cachimbos raros
olham-me em ardumes de língua,
dispostos a esperar,
condescendentes,
crendo-me servil...
E eu aqui, de mãos crespas
nos gestos da escrita,
vendo-me em todas as histórias
que compõem a minha história,
em repetições inevitáveis de anseios,
e ínfimos afagos doloridos,
íntimos como pequenos desconfortos...
Falta-me mais, muito mais,
do que essa bebida forte.
Falta-me o ritmo forte da África,
em dialetos , ao amanhecer.
Falta-me o silêncio dos peixes,
em cores distorcidas
no vidro líquido.
Faltam-me as velas,
e o vento caçado,
fazendo força contra a cana do meu leme.
E o deslocamento sem som
espirrando salpicos salgados,
nos meus olhos focados longe.
Tão longe,
que a saudade não é isso ...
Isso é amor !
( texto reeditado, de 2008 )