Saudade em forma

A saudade toma forma.

Vem num vestido florido e azul,

num incenso de Nag Champa,

na cerveja despreocupada

num fim de tarde proibido com o sol

refletindo-se nos tacos antigos...

O prazer do entardecer já não é o mesmo;

você não está aqui para ver.

O meu entardecer muda com o tempo,

mas a saudade toma forma; devora tudo

que permanece no tempo. É seu alimento.

Ela também vem na manhã, logo cedo,

quando me espreguiço e, te lembrando,

sinto o seu cheiro. É o que eu mais fazia

quando descansava no teu peito:

muito além de um carinho e um alento,

eu sentia você e o seu cheiro.

Que o cheiro também fica na memória,

toma forma quando te penso.

É um jeito de te ter no meu tempo.

A saudade toma forma de silêncio.

Mesmo que eu tenha primeiro

adorado a sonoridade da tua voz,

teu silêncio não é silêncio sem voz.

E eu adorei o teu silêncio sem jeito,

aquele silêncio-trejeito, nunca rarefeito.

Acima de tudo, a saudade toma forma

do teu olhar, olhar de bicho assustado,

olhar de desejo devoto,

olhar de tigre apanhado.

O teu olhar é brilho e fardo,

sentido no meu corpo esgarçado,

sentido no meu querer abusado.

De todas as saudades,

o teu olhar é a que dói mais.

E eu já não sou capaz

de não te procurar ao redor,

mas ainda que não me queiras,

posso ver o teu olhar e

o mar que ele enseja.

Acalma, que eu olho de longe:

assim não te causo horror,

com meu choro de areia.