[Ciclotimia ]
[Araguari-MG: naquelas ruas, naquelas praças, o sopro da vida em minhas narinas...]
Exauridas, as fêmeas ruas da minha cidade perfeita
sofrem ainda os calores do verão do Planalto.
No amplexo envolvente da frieza da noite que cai,
experimentando o ritmo dos meus passos, eu caminho...
Enquanto as pedras da calçada da Escola de Comércio
devolvem-me os sons do palmilhar dos meus sapatos,
das enormes vidraças das salas de aula agora vazias,
um cheiro peculiar sabe a vozes e cenas esquecidas.
Na praça em frente à “Escola”, cessa a opressão do calor;
ao redor do velho coreto, as folhagens e os arbustos
exalam aromas amornecidos pelas emanações
das pedras apenas aliviadas da fornalha do dia.
Alcanço a esquina e detenho-me ali;
a visão lúgubre do velho casarão ocre do açougue,
esmagadora, me oprime até o insuportável...
Retido por súbitas aparições, eu respiro...
O palor mortal da tarde faz voarem as décadas,
por um instante, reconstroem-se as cenas
daqueles Agoras, em que, como hoje,
a ansiedade pelo Amanhã era fundamental.
A “Praça”... a “Escola”... a "Feira da Quarta-Feira" —
possibilidades de eu abrir o meu sorriso entre os demais!
No intervalo das aulas, as minhas pernas franzinas
corriam, animadas, em meio ao burburinho da feira.
E na molhança dos dias chuvosos e frios,
os meus olhos se demoravam, curiosos,
nas mãos calosas dos feirantes,
nas manchas escuras dos seus rotos chapéus de feltro,
nos vapores emanados da respiração dos animais,
nos pingos que caíam dos arreios pendurados
dos varais que as carroças apontavam para o céu...
A chuva fina tornava ainda mais pobre o que já pouco tinha!
Reato-me... Neste instante, posso ver a rua movimentada,
a "Feira", a "Escola" agitada, e a "Praça" dormida em calma;
posso ouvir os fragmentos de conversas, as vozes — sons
dolorosos de uma latomia abafada, incompreensível, distante...
Pelas barras de ferro das portas que dão para a rua,
vejo a luz incandescente que vem dos fundos do açougue,
e lambe, suave, o comprido corredor até se desfazer na frente,
onde, o balcão de mármore, a balança, a velha escrivaninha,
e a pedra engordurada sobre a pilha de papéis de embrulho
suavizam a agudeza das suas formas na penumbra da tarde.
Ao fundo, os ganchos de ferro com sua lisura fria,
onde, durante o dia, penduram-se as carnes verdes,
estão espalhados a esmo na travessa escurecida dos anos;
vazios, brilhantes, eles agora falam da noite que se aproxima.
E o motor da velha geladeira de quatro portas de vidro espesso,
soturno, matraqueia incessante, um pavor de necrotérios...
Por ali, antes que a noite se feche de vez,
passa o velho caminhão que recolhe os ossos descarnados.
Nervuras fedorentas... juntas esbranquiçadas...
tendões arroxeados... ossos quebrados;
ombros humildes transportam o que restou
de seres outrora imponentes e plenos de vida
para as fábricas que os reduzirão ao pó
que será reintegrado à Terra.
Desce, sobre aquele tempo, a cortina do meu cotidiano;
exalo profundamente, o ar que me prendeu ali,
e, ainda oprimido, dobro aquela esquina para o Agora,
a mesma, onde o casarão ocre do açougue já nem é mais!
Neste instante, pensativos, quase incertos,
porém ainda desejosos de Amanhãs,
os meus passos me levam à Avenida Minas Gerais,
larga, vasta o bastante para me trazer a nascente luz
que clareava todos os meus sonhos de criança,
e infinita, infinita para o alto, até o horizonte tingido
pelos últimos raios do sol de agosto!
É para lá, para aquele alto intangível,
que me dirijo, sempre... e sempre.
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[Penas do Desterro, 29 de agosto de 1999]
Da minha coletânea “A Cidade em Letras”