Era uma vez a última vez
Era uma vez a última vez.
A vez de quem se olha e não se vê,
a vez de quem gosta dos pássaros e da chuva,
mas não se lembra a última vez em que
tocou um pássaro ou dançou na chuva.
Era uma vez a última vez
de quem dói sem perceber;
de quem se esfola no asfalto sem querer
depois de tanto planejar morte e mentiras.
Ironias da vida...
Era uma vez a última vez do silêncio,
cara a cara com o travesseiro
sufocando os gritos rasgados ou
de braços dados com o chuveiro ligado,
fonte da água que se junta a um choro amargo.
Vão dizer que isso é dramático,
vão chamá-lo de lunático ou problemático,
mas a verdade, meus caros,
é que quem sente sempre sente mais,
muito mais que um mero bocado.
Era uma vez a última vez da carne,
outrora flamejante de espasmos,
rubra, dolorosa, amante,
agora nada mais que um eterno rompante,
estilhaçada pelo desejo impensado.
Era uma vez a última vez da vontade
que busca compreender, mas já não tenta crer,
pois morre de desamor pela crença
que só trouxe chaga e doença,
com requintes de crueldade.
Era uma vez a última vez do tempo
que passa solitário pelos tormentos
falando sempre com si mesmo,
seja com tic-tac, bipe, sol ou monumento.
Era uma vez a última vez do pensamento.