O caso

Nos meus olhos de infância

Eu via aquele rapaz

Que ia e voltava

Nos cabelos tinha o sol

Nos olhos, céu e mar

E eu só sabia

Que ele passava

Era domingo

A cidade, depois da missa, aquietava

Um na cama dormia

Outro, na rede, balançava

E o moço, pela rua,

Subia e descia

E eu só sabia

Que ele passava

Era um tipo bonito

Um artista de cinema

O jeito de ele caminhar

Era um verso de um poema

De onde vinha

Para onde ia

Aquilo me intrigava

E eu só sabia

Que ele passava

Uma jovem viúva na janela

Com o olhar acompanhava

Havia nas retinas dela

Em cada uma

Uma lágrima

Brilhando como a última estrela

No robe de chambre

Da madrugada

E eu só sabia

Que ele passava

Um cachorro no jardim latia

E não sei bem o porquê

Meu coração de menina

Apertado, no peito, chorava

Todo domingo era o mesmo

E eu só sabia

Que ele passava

Se eu pudesse o seguiria

Para ver onde parava

E aquilo que fazia

Quando no lugar

Que sempre ia

Aquele homem chegava

E eu só sabia

Que ele passava

As mãos nos bolsos do paletó

Enfiadas

Guardava um mistério

Lá se ia, todo sério,

Passo a passo

A ladeira subia

A ladeira descia

Não demonstrava cansaço

E eu só sabia

Que ele passava

Os anos subindo e descendo

O terno emurchecendo

E eu sem nunca saber

Sobre o homem que passava

Veio um domingo

Eu já moça e curiosa

Toda prosa

Quase que perguntava

Meu senhor, de onde vem

Para onde o senhor vai

E com quem

Continuei sem saber

Sobre aquele

Que passava

Domingo a domingo

Eu estava acostumada

O homem ia e voltava

Na minha imaginação

Um mito se formava

E passei com esse homem

A sonhar dormindo

A sonhar acordada

De domingo a domingo

Ele passava

Em meus poemas de romântica juventude

Era nele que me inspirava

O homem sequer notava

E eu só queria saber

Por qual motivo aos domingos

Ele passava

Foi num desses domingos

Chovia

Uma estrela em cada pingo

Eu de coragem me armava

E o segui sob a chuva

Até a ladeira empinada

Ouvi uma mulher

Que com uma amiga comentava

_lá vai ele, a mulher sozinha em casa

Logo a seguir, finalmente

Ao destino ele aportava

Duas breves batidas à porta, que se abria

Ele entrava

Em casa da amante

Que, aos domingos, frequentava

Era uma mulher marcada e linda

Mas submissa, acuada

De segunda a sábado

Aquela porta jamais se abria

E a felicidade àquela dama sorria

No domingo

Quando aquele homem proibido

Àquela casinha chegava

Era então um senhor

O rosto com os mesmos traços

Mas lentas as pernas

Pendidos de amor os braços

Mas ele continuava

Um interminável domingo

De saudades a rua inundava

Ele não veio

O que seria

E eu só sabia que o homem

Não mais passava

Passados exatos sete dias

O silêncio a rua subia

A rua descia

Dentro de um ataúde

Feito de melancolia

A gente toda murmurava

Ele veio buscar a amante

Que sem ela não passava