POEMAS DE LUIS BENITEZ

LUIS BENITEZ

Luis Benítez nasceu em Buenos Aires no dia 10 de novembro de 1956.

É membro da Academia Ibero-americana de Poesia, Capítulo de New York, EUA, com sede na Columbia University, de World Poets Society (Grécia), da International Society of Writers (EUA), de Advisory Board de World Poetry Press (Índia), Membro Honorário da seção argentina de IFLAC (International Fórum for a Literature and a Culture of Peace) e da Sociedade de Escritoras e Escritores da Argentina. Recebeu o título de Compagnon da Poèsie da Association La Porte des Poetes, com sede na Université de La Sorbonne, Paris, França.

Prêmios recebidos

Primeiro Prêmio Internacional de Poesia La Porte des Poètes (Paris, 1991)

Menção de Honra do Concurso Municipal de Literatura (Poesia, Buenos Aires, 1991)

Segundo Prêmio Bienal da Poesia Argentina (Buenos Aires, 1992)

Terceiro Prêmio do Concurso Fundação Inca Seguros (Poesia, Buenos Aires, 1995)

Primeiro Prêmio Jovem Literatura (Poesia) da Fundação Amalia Lacroze de Fortabat (Buenos Aires, 1996)

Primeiro Prêmio do Concurso Internacional de Ficção (Montevideu, 1996)

Primo Premio Tuscolorum Di Poesia (Sicilia, Itália, 1996)

Terceiro Prêmio Eduardo Mallea de Narrativa (Buenos Aires, período 1995-1997).

Primeiro Prêmio de Romance Letras de Ouro (Buenos Aires, 2003)

Accesit 10éme. Concorurs International de Poésie (Paris, 2003)

Obras publicadas

Poemas da Terra e a Memória (poesia, Edi. Stephen and Bloom, Bs. As., 1980)

Mitologias/ A Balada da Mulher Perdida (poesia, Ultimo Reino, Bs. As., 1983)

Poesia Inédita de Hoje (Um panorama contemporâneo da poesia inédita argentina) (introdução, lembretes e seleção de 100 autores, Edi. NOUS, Bs. As., 1983)

Juan L. Ortiz: O Contra-Rimbaud (ensaio, 1ª. ed. Edi. Filofalsía, Bs. As., 1985, 2ª. ed. Edi. Filofalsía, Bs. As. 1986)

Behering e outros poemas (poesia, 1ª. ed., Edi. Filofalsía, Bs. As., 1985, 2ª. ed. Cadernos do Zopilote, México D.F., 1993)

Guerras, Epitáfios e Conversações (poesia, Edi. Satura, Bs. As., 1989)

Fractal (poesia, Edi. Correio Latino, Bs. As., 1992)

O Passado e as Vésperas (poesia, Edi. da Universidade de los Andes, Venezuela, 1995)

O Horror na Narrativa de Alberto Jiménez Ure (ensaio, Edi. da Universidade de los Andes, Venezuela, 1996)

Selected Poems (antologia poética, seleção e tradução de Verônica Miranda, Edi. Luz Bilingual Publishing, Inc. Los Angeles, USA, 1996)

A Égua da Noite (poesia, Edi. Edições Del Castillo, Santiago do Chile, Chile, 2001).

Tango do Mudo (romance, Edi. De la Plaza, Montevideu, Uruguai, 1997. Edi. Pele de Leopardo/Wordtheque, Bs. As., 2003).

Jorge Luis Borges: As trevas e a glória (ensaio, Edi. Leia, Buenos Aires, 2004).

O Venenero e Outros Poemas (poesia, Edi. Nova Geração, Buenos Aires, 2005).

A tarde do elefante e outros poemas (poesia, Edi. Asa de Corvo, Caracas, Venezuela, 2006)

Obras sobre o autor

Sobre as poesias de Luis Benítez, de Carlos Elliff (ensaio, Edi. Metáfora, Bs. As., 1991)

Conversações com o poeta Luis Benítez, de Alejandro Elissagaray e Pamela Nader (Tomo I, 1995, Tomo II, 1997, Edi. Nova Geração, Bs. As.)

Antologia (seleção e ensaio preliminar de Alejandro Elissagaray, 2001, Edi. Nova Geração, Bs. As.).

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DO ÚTERO À TUMBA UM SONHO TE LEVARÁ

Do útero à tumba um sonho te levará,

nu, o escarpim e a mortalha feitos da mesma seda.

Um sonho com bochechas de pétalas que martela em tua mente,

um beijo gelado, uma pancada na nuca dado

por um desconhecido com luvas de ferro,

soando atrás de tua porta no ferrolho.

Fantasma de metal teu corpo,

desde as curtas calças à bengala do velho

transitado por estrangeiros que se aproximam para escrutinar tuas vísceras

e os sinais do céu com seus dedos de morte,

verás assombrado como a colher cheia

deposita com igualdade beijos e dentadas em tua alma côncava.

Do útero à tumba,

cravado à terra que só se abre duas vezes,

teus olhos noivando com as fotografias

verão ao menino livre de pecado e cicatrizes,

diáfano, embora seu pranto pressinta

e ao ferro do amor te marcando a virilha

e ao moinho do esquecimento girando, por um vento de ossos.

Do útero à tumba um sonho te levará,

as rédeas feitas migalhas nesse torvelinho,

em dois segundos de setenta anos,

só um entalhe, em um relógio enorme.

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ALGO FLUI, QUANDO JÁ NADA SE AGITA

Algo flui quando já nada se agita.

E seu passo inadvertido pelas trevas que dormem conosco

trocará em uma luz exasperada quanto de cega tem a miséria.

Desde o fundo, poço ou pântano de números,

onde perseguidos pelo mundo e suas milhares de cabeças

caímos quinze línguas dentro da carne,

algo que só pode se tocar abastecido das luvas do desespero,

algo flui, quando acreditamos que já nada se agita.

Obriga ao dolorido músculo do coração

e ao fechado osso da mente

para comer e beber, ainda dentro das suas celas.

É uma força que leva-nos rude da mão

e inventa um caminho de cor insólita,

por onde fugimos nus dos cegos.

Obediente, ela agitará as pálpebras dos mortos

e fará fugir à mosca-heraldo, que espera

paciente, pendurada da gula.

Pendurará de novo o sol, quando a lua caia.

Poderemos vê-la pulsar no meio de nossas negras sombras,

ainda quando boquiabertos, observemos dia- a- dia

passar nossos próprios funerais.

Algo flui quando já nada se agita.

Por sua graça haverá fruto nas flores murchas

(sua magia grunhirá na vértebra)

lançará pelo ar anciões e foices com passos de dilúvio;

nossos jovens cabelos brancos negrecem-se,

ante o apito de prata beijado a último momento

com mãos trêmulas que jogam ao vento dos leitos.

E quando nossos pálidos ossos

dêem força e vigor às margaridas, ainda palpitarão desde a tumba.

Porque algo flui, quando acreditamos que já nada se agita.

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ME DE UMA MENTIRA ENORME

Me dê uma mentira enorme,

que faça tremer os pulsos da idade

com sua pisada grave e significativa,

que espante de mim os pássaros negros e os vermes

que colho sem me propor isso na doca do medo

e as arrume para me fazer acreditar

que o homem pode sair de si,

ser um com a mulher e amá-la sem destruir-se.

Algo que dure um momento e venha de teus lábios,

para que eu me esconda e os altivos e os néscios não me vejam.

Detrás desses frágeis cenários viverá feliz e pequenino,

longe do tédio e dos olhos que escrutinam na noite.

Sem medo ao silêncio e às feras,

logo que a mentira fosse pronunciada,

como por um feitiço efêmero correriam os calcanhares do infortúnio

e nem ele, nem a miséria, pescariam já nada em meus sentidos embotados.

A angústia do homem arderia como bruxa-fénix

e estes olhos e estas pobres mãos que rezam sem chegar

ao rabo de Deus nas alturas, jogariam ao chão,

desfeito, o velho coração da amargura,

contentes em sua máscara nova.

Me dê uma mentira enorme,

que faça girar ao contrário o tempo nos relógios

e me arrulhe nela,

até que em meus lábios apareça

o gelado sorriso do idiota.

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OH! TRAZ O VINHO NEGRO

Oh! Traz o vinho negro,

que leva seu bosque, a terra com mortos e virgens cegantes

em um caudal desesperado até minha boca,

ele mescla o sangue e o sêmen do homem

para lhe dar um filho de olhar turvo.

Quero os olhos de fogo e de marés,

que não deixam entrar a morte as minhas palavras,

mas me aproximam com asas de molhados papéis

à risada oca de meus ossos,

companheiros únicos e fiéis nos anos navegantes

que desceram do útero comigo, para este mundo de percevejos e desgraças.

Traz o vinho negro com rolha de seca caveira

que me faz ouvir nos quartos vizinhos

pianos tocados por meu espectro,

enquanto o tempo transcorre devagar entre os dedos

e posso brincar com ele e com seus rudes templos bailarinos.

Só assim posso olhar tranqüilo o mundo da noite,

enquanto o seco rosto do amor

apaga-me lentamente cigarros sobre o estômago

e a garganta que pronunciou seu nome faz-se uma cisterna,

onde pulam rãs, triângulos, confusos centauros em desordem.

Traz o vinho negro.

Esta noite quero todos os meus fantasmas nas veias.

Eles despertarão com seus beijos,

a glória, em nossos entristecidos corações.

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HOMEM MASSA

Estava sozinho entre as coisas

como uma estrela única no céu

e um morto no centro da terra.

Ao seu redor os homens traficavam colares de arame

e a vida elevava sua babel,

como uma aranha exata e silenciosa.

Anos e anos; os fios das estações

atavam-no aos seus nós com a corda da morte

enquanto o silêncio lhe assinava a boca.

Porque fugia entre gritos de horríveis alaridos,

da mão que golpeia a mesa faminta no centro da alma.

E em todas as coisas e em todos os homens

o signo da morte que reluz na sombra.

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TUDO O QUE DIREI DE TI

Boca de pássaro

em teus olhos de ferro hoje enferruja-se a dor.

Na manhã que treme

e no sol que a esquenta

no final da noite com garras de morto

em todos os lugares comuns, ou seja:

lua

chuva

estrelas

está tua origem e a origem de teu nome.

Eres a faca que corta o pão dos pobres

e a mão que acende o cigarro do triste.

Bem-vinda gritam minhas coisas meu passado

Brinquedos os lápis carícias bem-vinda

meus anos verdes e meus anos cinzas

a alegria dos homens que agora posso ver.

Minha amada com boca de deusa pagã

bêbada em seu manto que sorri

minha amada com promessas de espanto

minha amada uma e mil vezes viva e definitiva

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OS MEDOS

ah os terrores que nos visitam de noite

que não se ocultam do dia

os quais não inspira nenhuma coisa grande

nenhum desconhecido continente pisado recém a borda

nem tampouco um leal inimigo

francamente procurado em uma taipa

nem o assombroso eclipse que deixa o meio-dia em sombra

nem um terrível Senhor dos Exércitos

em desertos abrasados pelo sol dos povos aventureiros

ah os medos os pequenos medos de pequenos homens

não os medos que eram ao seu modo honra de um animal

nu na enorme extensão de coisas que não tinham nome

não ao estar sozinho e de pé

entre um imenso campo e um imenso céu

não à sombra adornada de olhos fosforescentes

à morte de noite

entre os dentes do animal mais belo da terra

uma morte de homem

não à queda propiciada pelo raio

à corrente à avalanche ao fogo da terra

nem ao outro fogo prometido debaixo da terra

ah os medos que não origina

um deus terrível saído da floresta

nem um parente medieval com sua corte de bruxas e de fetos

não o suor frio frente a frente espada contra espada

flecha contra winchester dardo contra lança

trocou a morte de palavras

não é a certeza de uma chuva ardente

nem o prognóstico que um inseto leva entre raízes

no final também uma boa causa como a antiga peste

ah os medos que você conhece

e que são meus exatamente esses

não se ocultam debaixo da cama

não precisam o ranger da madeira o uivo de nada

povoam nossos sonhos de rostos e de notas

eles dormem e caminham conosco

bebem se alimentam voltam sempre.

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O URO

Atrás do tempo um animal me olha:

ele sabe o que escrevo porque antes de mim

já foi um nome. É o uro.

Fantasia quem o toma pelo touro.

Às vezes é um pássaro, um rio, o vento

E, às vezes, é alguma coisa que deixa nos ramos

grandes manchas de sangue e um passo

que se afasta, maciço e invisível.

Não o vulnera o machado nem a pedra

de uma arcaica Europa que ainda não sonha

forjando metais e a História.

É o uro. Às vezes é um homem

que foge de si mesmo.

Um animal pensante que tem saudade de voltar para o bosque

do eterno presente, às paixões soberbas,

à ira, a fúria e a morte violenta

do domínio e o ciúme.

É o uro. Em seus olhos avermelhados

há alguma coisa execrável.

Aterra-nos que volte e que volte

Dionisos com seu corte de faunos

e o terror e a noite derrubando cidades,

entrando-nos no fogo dos deuses famintos

que reclamam a terra, a luz, o ar.

As imaginações.

É o uro. No confim das cidades

tudo isto cabe entre seus chifres.

Ali onde recorda, uma por uma,

as traições do homem.

Não rumina vinganças, não planeja

surgir na cúmplice noite a cobrar-se

a desforra com suas duas adagas, se o terror

do retorno não bastasse para matar a um homem.

Não se mata aos mortos. “Sou o uro.

Zeus usou minha forma para raptar a Europa.

Vi, imutável, no rodar das estações

passar aos fenícios, os partos e os gregos.

O tempo é um só dia. Matei a um imortal

na aurora e na Sumeria e ao meio-dia

descreveu-me Plinio o Velho, entusiasmado.

Cartago durou uma hora; Roma, possivelmente duas.

O menino Lutero me temia: já era uma lenda.

Acreditou extinguir-me um cortesão do século dezessete:

a terra que o cobre têm a sua estirpe,

sua esposa e seu palácio. Esse é o homem:

pó que engolem as colinas.

Sou o uro, o real. Ele é imaginário”.

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PARA MARCEL SCHWOB

Esse esplêndido encaixe de terrores luxuosos,

essa trágica risada que veste nos dias

sobre homens e coisas, não abandonou

o mundo contigo, Marcel Schwob.

Te evocar é uma tarde em teus livros, minha,

e uma noite de escrivaninha, tua:

o tempo, que é o mesmo, confunde escuridões.

Ninguém descobre nada, tão somente desenterra

segredos esquecidos, verdades descartadas.

Vê? Esta é a mulher que amo:

não tem lido teu Monelle que é sua irmã,

não conhece tuas Vidas e como a de todos,

a sua é imaginária.

Suas horas completam minhas tardes, tuas palavras.

Entre nós três pactamos:

Nenhum sabe o quê, como nem quando.

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O QUE O POETA DIZIA

Sou teu inimigo que não terá piedade. / Guerra te chamarei e tomarei

/ contigo as liberdades da guerra. /

E nas minhas mãos teu rosto escuro e atravessado,

/no meu coração o país que / ilumina a tormenta.

Ives Bonnefoy

Cedo nos lançava a noite

seus grandes olhos de deusa

havia nessas ruas outra luz

que não conhece o dia

e nada nem ninguém sabia da morte

vinha atrás de ti longa e enigmática

presença onde me reconheço

outros cantem a glória do evidente

e farão o justo

eu viverei sempre

nesta pele estas mãos,

e este corpo

banhado por outra luz outra presença.

Outra guerra há que a do pão

outra embriaguez que a do vinho

outra terra há nesta terra:

Eterna é nossa primavera.

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INFÂNCIA DA MARAVILHOSA

E ali estavas, viva,

vinhas dos candentes países que não recorda ninguém

senão no último minuto, ao início do tempo estavas

entre o sangue e a luz como uma chorosa pérola entre raízes,

ali estavas logo depois da longa agonia entre duas respirações,

logo do longo túnel e o sonho onde eres uma só Humanidade,

recordas? um minuto antes eram as ruas de Ur,

a turva pré-história, o ciclo da seiva ao sangue,

a nua inocência de um mesclado universo onde tudo convivia;

recordas? oh sim me diga que recordas longo e cintilante meu amor,

me diga que te lembras de teu rosto em um lago que secou-se faz séculos,

que memoras a sangrenta imagem do interior do útero

onde toda a história passava veloz pelas paredes

e me diga que te lembras de alguém que te amou

e que não era eu e que era um fenício, um tirio,

um homem de longínquas idades e de teu vestido

esmigalhado na câmara do rei.

Eu falarei do tempo em que te reconheci,.

como reconhecestes ao fogo, esse movediço companheiro

que te amornou as mãos, que te queimou os dedos.

Tinhas dois anos, recordas? Me diga que recordas,

um pesado segredo pode se fazer pedaços tão somente por esse esquecimento,

me diga que te lembras de homens e mulheres gigantes

e de paredes enormes e assim saberei o que é certo:

antes, nesse tempo, dançava o tempo

e você corria como corremos todos atrás de duendes e de fadas

que engoliu um lento movimento para nós,

para estas mãos e rostos que insultam o espelho.

Tens presente as tuas bonecas? Lembra-te da negra

que odiavas e da desfiada loira que vias,

porque você a via, não é certo, chorar sobre tua saia?

E os pequenos animais, os míticos e os outros,

formavam o cortejo de uma menina sozinha.

Lembra-te do medo, esse velho emissário,

lembra-te das sombras em um canto do quarto,

do horrível abajur que te fazia chorar.

Ali do medo nasceu tua risada, essa que só eu posso ver,

esse gesto infinito que apaga a morte das idades,

essa revanche do homem sobre o pó que será.

E ali seguia viva sobre um trilhão de mortos,

sobre todos os mortos e nada detinha o vacilar dos ossos,

o avanço do corpo entre os corpos, lançada a

mente para a luz corria, entre precipícios e sombras

e entre sangues e esquecimentos do que foi ontem, vinhas,

sim, você vinha atravessando teu espaço, tua forma, tua matéria,

era um universo em viagem através do universo.

Mas de onde veio esse rosto a me preocupar de si,

de onde esse cheiro que se ignora a si mesmo, desde

que então sutil já te conhecia.

Lembra-te de um sala-de-aula onde já foi calada e peregrina

entre papéis e cestos e mapas?

Hoje a metade desses meninos são fantasmas

que erram pelo mundo,

eles não te recordam e entretanto invejo

seu inútil privilégio:

o ter visto em flor teus oito anos

quando o inocente risco do mundo era feliz.

Recordas? Recordas a girafa de um domingo chuvoso

da mão de teu pai? Bem, eu invejo

esse alto animal que sorri sempre,

porque te viu uma tarde, já faz muito.

O amor é dadivoso: nos dá o irreparável

e não volta para esse já nunca onde vivemos tanto,

embora por que não gozar a fruta da memória.

Tudo é suposição e eu suponho que essa manchada,

elevada arquitetura, desde seu tempo sem limites

é a mesma que viu o que já jamais poderá me mostrar:

essa primeira alma que ainda, então,

falava com todos os animais e o centro das coisas.

Mas de onde veio este rosto a me chamar

de um tempo ido que nem ele recorda

embora alguma vez o esquece?

Mas de onde, onde?

Os objetos, as chaves, os cadernos, as aves, os insetos,

as nuvens dos céus que houve, as paisagens

onde hoje derrubaram-se casas e tiraram mortos,

as noites e os dias pelos quais caminhastes sozinha,

voltam em cada meia-noite, em cada meio-dia,

vamos chorar sobre essas imagens,

vemos gritar sobre essas imagens e sobre o mesmo pranto

que não reconhecemos: um homem, uma mulher

que se perderam são mais uma vitória

de um fechado círculo, a sombra sobre a luz

risca seu cone árduo, perdemos ambos

esta guerra infinita. Perdemos ambos o mais prezado:

a um desconhecido.

Eu imaginei tua infância.

Eu fui valente.

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BEHERING

Em cada um deles era muitos um homem.

Eram mais ainda. Traziam a indústria das armas

e a rena vermelha, como um bosque ondulante

e atrás o lobo que, em uma manhã já sinto saudade,

seria o cão da fogueira e das sobras,

o servente branco.

Eram muitos, não um homem.

Vagos seus nomes

referiam-se ao vento e aos totens,

a um fato que aconteceu em um nascimento,

o degelo que afogou

ou o meteoro fugaz que ardeu na tundra

ou a moça audaz que em mar aberto,

salvou ao seu filho da cólera brutal da baleia.

Seus deuses eram o salmão

que cada ano retorna como o ano

e que vai ao mar e o urso pardo,

uma montanha que muge

e que o fio de lança abate,

e o pesado bisão e o tigre listrado,

que ficou na Siberia

e que a manta da navalha evoca:

estrangeiros, eles seriam a América,

a múltipla figura que não soube Balboa e que Pizarro

abandonou à imaginação de um franciscano.

De osso, não de madeira e de noite

seriam seus deuses nem da pedra

que lavram os povos de uma terra suposta,

entre a névoa de suas transmigrações.

Eram cruéis e antigos como a Ásia;

fundariam impérios na aurora e no México,

reinos na Bolívia, fortalezas

onde um signo inequívoco mostrasse

a vontade destes deuses:

uma águia no ar arrebatando a serpente,

uma árvore singular, como uma lembrança

das planícies geladas e o Mar Branco,

que já evocavam só os velhos moribundos

e o Sonho, que é eterno.

Elevariam Tenochtitlán, o Cuzco

e o enigma silencioso, Tiahuanaco,

na ilha de Páscoa graves rostos

que contemplam ainda sua grande marcha;

outros, entretanto, voltariam

ao coração das selvas e ao esquecimento,

como os mortos ao passado,

ao país do berço e das tumbas.

Amanhã, ainda, ainda faltava,

novos estrangeiros elevariam

ferrovias, ruas, edifícios,

calendários regidos pelo sol e não a lua,

vindos de outros Beherings e outras datas,

em nossas claras cidades, oh ingênuas terras,

seremos sempre duplos:

um só e muitos, homens de nenhuma parte.

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A INGÊNUA

Ela acreditava que a refletiam os espelhos

que era esses dedos que remexiam no rosto

as lentas mutações

que era seu pulôver seus sapatos

o que recordava e o esquecido

que era uma grinalda detrás dele

que era sua cabeça

que era suas amigas seus trabalhos

um homem em uma esquina. Uma manhã.

As casas que habitou seus quatro bairros

que era as que era depois do portão impreciso dos sonhos

que alcançava para ela o gentilício

e a história de um país incerto

a fome a sede

ou o que amava

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JOHN KEATS

Caem sobre ele os atos inúteis do dia.

John Keats recorda e é também de outros a lembrança:

humilhações, rostos e palavras

fazem de um poço a noite repetida.

“Fanny Brawne me afastaste,

tu me aproximaste de Keats e era o mesmo”.

Parece tão distante o Mar do Norte

para ser cada segundo todos os mares,

mas se o que foi e será amanhã brilha

em sua escura hora presente, esse homem pequeno,

inclinado sobre o verso, adivinha-o.

Pressente que será um e vai ser todos

quando é tão caro o preço disso múltiplo:

já não o amparará o primeiro ardor pelas palavras,

não aliviará suas horas a fúria, perdida, de estar vivo

nem o protegerá a noite pedida de nenhum esquecimento;

nada o salvará de tanto

o que é, em sua medida, tão um pouco.

John Keats será John Keats, será nós.

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JÚBILO E CAÍDA

Primeira harmonia ali te vi, não era necessário

olhar as partes de teu reino inteiro mas ali te vi

e não quis me deter em tua borda, tua borda

que está nas simples coisas cheias de tua ondulante sombra.

Que delicadamente, luz na luz, centro do dia,

você corporiza ou escolhe uma simples forma quando nos emprestas teus olhos

e como um eterno amor nos leva da mão

a tuas criaturas, ali onde eres sim,

no animado, a infinita dança,

a queixa mesma de quanto existe.

Alta serenidade todo é teu copo e cada um

declara teu uma cor nova. É abril

de um ano que para ti não conta e no entanto

um doce calor te trouxe aqui ao meu lado. Era eu apenas

uma certeza esta manhã e a espuma do sonho

e os lados do dia se apagavam em mim.

Bastou pedir, correr ao teu contágio,

para que um sopro sobre as cinzas que empoeiravam as coisas

acendesse de novo o mundo de carbunclos,

as ametistas do ar... as múltiplas facetas

de tuas brilhantes vitrines, de onde vêm,

de que abismo profundo ou de que topo público e exposto,

de que outro tempo senão visitado,

apenas entrevisto no fogo do fogo?

Pior jejum não há, que o que há de ti.

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DAS TANTAS COISAS QUE NÃO PODE

Das tantas coisas que não pode

mostrar certamente a palavra,

a primeira impossível é o cheiro

tão próprio e exato das coisas.

A poesia também é como o aroma.

Assim ficam sem nome

o cheiro definitivo da chuva

e o efêmero matiz que se respira

ao aparecer às sombras de uma cisterna;

o cheiro do primeiro mar, aos seis anos,

a fragrância, que nos assustava, dos céus nublados,

e o cheiro da comida de uma casa

que foi querida.

A memória talvez seja

só visão de aromas esquecidos,

como este papel aonde chamo

à presença ardente de umas folhas queimadas

e à chave do enigma da rosa;

ao cheiro dos sangues

que não vi derramar-se,

ao cheiro do incenso e ao da cânfora,

um cheiro que resplandece;

ao das jovens mulheres nos banheiros públicos,

ao das moedas, que abandonam a mão

e que retornam, ao da terra de Pinzón

uma manhã de outubro, ao dos gatos,

ao cheiro milagroso das coisas vulgares,

das que apenas se compreende

que emanam a noite poderosa,

ao de um rio que corre longe

e ao que sem razão evoco,

ao da palavra marisma, ao de retablo,

aos desta manhã

que partiram para um país sem aonde,

ao de uma moça que foi embora,

em 2 de novembro de 1982,

para que minhas palavras

pedissem o perfume de uns versos

e ficassem a data e a balada,

o das baleias que tingem

a espuma de azeite e de tamanho,

o de um homem que falava da origem do dia,

ao das tantas coisas

às que não pude me aproximar e que me esperam.

São outro mundo mais sobre este mundo,

vejo o bosque e entre o bosque

a selva do aroma.

Eu vou embora dos homens e as coisas

como um selvagem que parte às cidades

e diz adeus ao seu mundo de aromas;

também para mim eles voltam

belos e pesados como um remorso.

Serão desde estes versos minha memória,

seguirão sobre o mundo

quando eu tiver morrido.

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ENTÃO, O CANTO...

Cruza tua voz os círculos do sonho,

como se um deus antigo te fechasse a boca,

atrás de que outros cantos

sem espuma em que águas?

É de dia em teu sonho sob um sol diferente,

sonâmbula ao mesmo tempo na beira do mar e o centro.

Oh não despertem à escolhida

nas profundas gargantas das coisas,

que ninguém, cruzando a habitação,

pule dentro do sonho

por cair nos seus rastros sobre quais caminhos;

ninguém, nem os sons nem minha mão,

que existem aonde existe o tempo,

adicionem suas chaves ao enigma;

não canta, é você a cantada.

Na manhã ardente dos olhos fechados,

escuta os sussurros, as nervuras minerais,

acaricia as sombras, reclama outra estatura,

a traz para os homens.

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POEMA DO NUMERO ZERO

Quando a morte assinala a fibra luminosa que somos,

como treme sua luz, como pisca com o vento repentino,

como se aterra ao pensar na escuridão, o silêncio,

o dedo que escolhe antes, enquanto as luzes correm ardendo

para o quase supremo resplendor, que é o número 1,

antes do zero.

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CONVERSAÇÕES

A história das constelações

gravada no brilho de uma folha:

quisesse ler a folha

e recordar aquela forma

de onde nos desprendemos

os seres e as coisas.

E antes de que nos devore a Grande Noite

ouvir seu nome,

por empanar a orgulhosa escuridão

com o ardente som da luz, ao quebrantar-se.

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JÚBILO E CAÍDA

Primeira harmonia ali te vi, não era necessário

olhar as partes de teu reino inteiro mas ali te vi

e não quis me deter em tua borda, tua borda

que está nas simples coisas cheias de tua ondulante sombra.

Que delicadamente, luz na luz, centro do dia,

você corporiza ou escolhe uma simples forma quando nos emprestas teus olhos

e como um eterno amor nos leva da mão

a tuas criaturas, ali onde eres sim,

no animado, a infinita dança,

a queixa mesma de quanto existe.

Alta serenidade todo é teu copo e cada um

declara teu uma cor nova. É abril

de um ano que para ti não conta e no entanto

um doce calor te trouxe aqui ao meu lado. Era eu apenas

uma certeza esta manhã e a espuma do sonho

e os lados do dia se apagavam em mim.

Bastou pedir, correr ao teu contágio,

para que um sopro sobre as cinzas que empoeiravam as coisas

acendesse de novo o mundo de carbunclos,

as ametistas do ar... as múltiplas facetas

de tuas brilhantes vitrines, de onde vêm,

de que abismo profundo ou de que topo público e exposto,

de que outro tempo senão visitado,

apenas entrevisto no fogo do fogo?

Pior jejum não há, que o que há de ti.

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DAS TANTAS COISAS QUE NÃO PODE

Das tantas coisas que não pode

mostrar certamente a palavra,

a primeira impossível é o cheiro

tão próprio e exato das coisas.

A poesia também é como o aroma.

Assim ficam sem nome

o cheiro definitivo da chuva

e o efêmero matiz que se respira

ao aparecer às sombras de uma cisterna;

o cheiro do primeiro mar, aos seis anos,

a fragrância, que nos assustava, dos céus nublados,

e o cheiro da comida de uma casa

que foi querida.

A memória talvez seja

só visão de aromas esquecidos,

como este papel aonde chamo

à presença ardente de umas folhas queimadas

e à chave do enigma da rosa;

ao cheiro dos sangues

que não vi derramar-se,

ao cheiro do incenso e ao da cânfora,

um cheiro que resplandece;

ao das jovens mulheres nos banheiros públicos,

ao das moedas, que abandonam a mão

e que retornam, ao da terra de Pinzón

uma manhã de outubro, ao dos gatos,

ao cheiro milagroso das coisas vulgares,

das que apenas se compreende

que emanam a noite poderosa,

ao de um rio que corre longe

e ao que sem razão evoco,

ao da palavra marisma, ao de retablo,

aos desta manhã

que partiram para um país sem aonde,

ao de uma moça que foi embora,

em 2 de novembro de 1982,

para que minhas palavras

pedissem o perfume de uns versos

e ficassem a data e a balada,

o das baleias que tingem

a espuma de azeite e de tamanho,

o de um homem que falava da origem do dia,

ao das tantas coisas

às que não pude me aproximar e que me esperam.

São outro mundo mais sobre este mundo,

vejo o bosque e entre o bosque

a selva do aroma.

Eu vou embora dos homens e as coisas

como um selvagem que parte às cidades

e diz adeus ao seu mundo de aromas;

também para mim eles voltam

belos e pesados como um remorso.

Serão desde estes versos minha memória,

seguirão sobre o mundo

quando eu tiver morrido.

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ENTÃO, O CANTO...

Cruza tua voz os círculos do sonho,

como se um deus antigo te fechasse a boca,

atrás de que outros cantos

sem espuma em que águas?

É de dia em teu sonho sob um sol diferente,

sonâmbula ao mesmo tempo na beira do mar e o centro.

Oh não despertem à escolhida

nas profundas gargantas das coisas,

que ninguém, cruzando a habitação,

pule dentro do sonho

por cair nos seus rastros sobre quais caminhos;

ninguém, nem os sons nem minha mão,

que existem aonde existe o tempo,

adicionem suas chaves ao enigma;

não canta, é você a cantada.

Na manhã ardente dos olhos fechados,

escuta os sussurros, as nervuras minerais,

acaricia as sombras, reclama outra estatura,

a traz para os homens.

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POEMA DO NUMERO ZERO

Quando a morte assinala a fibra luminosa que somos,

como treme sua luz, como pisca com o vento repentino,

como se aterra ao pensar na escuridão, o silêncio,

o dedo que escolhe antes, enquanto as luzes correm ardendo

para o quase supremo resplendor, que é o número 1,

antes do zero.

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CONVERSAÇÕES

A história das constelações

gravada no brilho de uma folha:

quisesse ler a folha

e recordar aquela forma

de onde nos desprendemos

os seres e as coisas.

E antes de que nos devore a Grande Noite

ouvir seu nome,

por empanar a orgulhosa escuridão

com o ardente som da luz, ao quebrantar-se.

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LAO-TSE PREPARA UMA SENTENÇA

Nada do que diga

Pode desviar a queda de uma folha.

Uma palavra não

Freará a outra.

É inútil que estes

Que me escutam dedique

Uma verdade: farão-a pedaços.

De seus pedaços nascerá Lao-Tsé.

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O PESCADOR DE PÉROLAS

Esta tarde e parte da noite

voltei para mergulhar-me no espesso mar

onde flutuamos os seres e as coisas.

Desci por pérolas que mostrar aos homens

que temem sequer o risco da beira-mar.

Esta tarde e parte da noite

estive nesse silêncio, nessas profundezas

onde o mais infinito prazer seria dissolver-se

e soube que em todos os caminhos

há monstros para quem os teme.

Cheguei nadando aonde não se ama nem se odeia,

simplesmente se flutua sobre um eterno presente

e tudo o que olhas é teu contemporâneo:

nada mais trazem as ondas do atrás e o adiante.

Tomei ali esta pérola e agora te ofereço .

Mas quando quis voltar,

não vi nenhum homem na beira-mar.

Não vi a beira-mar. Tudo é o mar.

Esses que temem a beira-mar

não sabem que caminham no mar.

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Luis Benítez
Enviado por Luis Benítez em 10/04/2007
Código do texto: T444503