Em Todos os Atos
Um dia,quem sabe,escreverei sobre você,
E todos os seus antecessores e sucessores,
Gravarei a biografia de seis a sete bilhões;
Talvez andem em mim, como o solo em que caminham,
Talvez me respire, como o ar que lhes abastecem
E depois me exalam nas palavras, no suor,
E descansem sepultados dentro de mim,
E renasçam leigos até me encontrar;
Serei o marco, como vocês são agora para mim,
Todos que nem conheço, nem sei da existência,
Nesse exato momento, roubam meu eu,
Estou vagando em um ser desconhecido,
Estou em Xangai, ferido por uma ditadura que nunca vivi,
Estou nas Highlands, com o vento nos cabelos,
Escutando músicas em gaita de foles que nunca ouvi,
Estou em Dublin, confuso e castrado por uma educação religiosa
Que nunca aprendi, estou no Moçambique sem forças pra chorar,
Doente de uma fome que nunca senti,
Estou em Bagdá, tendo minhas lágrimas negras sugadas
Pela Boca que engole toda riqueza estrangeira,
Mas é intolerante a qualquer estrangeiro,
Agora sou soldado de tal Boca, com o orgulho ferido que nunca tive,
E o pretexto de vingar minhas irmãs gêmeas
Assassinadas pela indigestão, de tudo que eu não engoli;
Retorno ao meu corpo, para levar meus amores a meus devaneios,
Vou a Paris do início do século passado, ouvir jazz, beber, dançar,
E volto a Batatais de agora para levar minha namorada pra lá,
Festejando uma festa que nunca fomos,
Depois repousamos em Goa, tomando chá e meditando
No som indiano além do cromatismo, um servindo de ninho
Para o outro, deixando o mundo acontecer a nossa volta,
Revigoramo-nos e vamos à Grécia Antiga, nos abastecemos
Com um banho de luz de Apolo, chegamos ao extremo brilho,
Perfumamos-nos com Afrodite, tudo para amar
Na casa onde Dionísio é o anfitrião,
Ultrapassamos a volúpia dos Deuses, que jamais fora ultrapassada,
Agora estou em Marte duas eras depois com meu irmão,
Montando castelos de areia vermelha,
Que nunca saberei se serão possíveis de montar,
Estou com minha irmã no Cairo, dançando com o Faraó
Da primeira dinastia e tomando a primeira cerveja
Que nunca saberei o gosto, estou com minha mãe
Voando nas ondas do mar que nos jogam
Nos seios de Fernando de Noronha,
E as pedras são tão macias, que nos dão um conforto
Que nunca sentiríamos com o cetim ou algodão,
Estou com meu avô num rancho em Minas Gerais,
Na beira do rio São Francisco, ouvindo-o contar suas histórias,
Vendo-o tocar violão e cantar, arrumando sua caixa de pesca,
Enquanto desejo-o a impossível imortalidade física;
Estou com meu violão na Lapa, numa Jam com todos os mestres,
Na época em que o Redentor possuía a parte frontal para todos os lados;
Desintegro-me, não sou, nem fui, nem serei,
Não sou nem a escuridão, nem a luz, não tenho cor nenhuma,
Não possuo nem a forma do nada, pois o nada para ti,
É um vazio já imaginado, sou anterior ao vácuo, ao big-bang,
Sou posterior ao fim desse universo e de qualquer outro
Que exista,e aos que nunca existiram,sou o não ser,
Transgredi o nada nunca imaginado, pois nunca fui
Imaginado até agora, e nem serei por mim ou por você;
Tornei-me tudo, mas tudo o que o olho não pode enxergar,
Sou mais disforme que energia e matéria escura,
E sou mais grandioso que ambas, nesse e em qualquer outro Universo,
Sou a textura de tudo que quebra e constrói as formas,
Mas jamais poderá me descrever na geometria,
Meu cálculo é maior do que o infinito incontável,
Tanto antes como depois do zero,
Sou as matérias e não-matérias fora do homem
E tudo o que se expande ou contrai fora dele,
Também sou o mergulho dentro de todo homem,
O Universo na xícara de café, o abismo de fogo,
A constante destruição que gera a criação,
Sou um circulo dentro do outro, um Heráclito e outro Parmênides,
Sou Deus, Sou Adão, Sou tudo que escrevi aqui,
E o que escrevi antes, e o que escreverei depois,
A prova cabal disto será todos que não lerem isto,
Pois tudo que está escrito aqui até agora,
Só torna-se possível se a humanidade não encontrar-me
Nessas ou em quaisquer palavras, a realização no triunfo da indigência,
Pois se encontrarem isso, serei apenas um homem,
Trancado em uma forma mortal,
E tudo que você leu até agora transformará
Apenas em Teoria e
Poesia.