[A Inutilidade ou o Esquecimento?]
Propriamente, eu nunca quero dizer nada,
eu apenas tento fotografar com palavras
as captações ansiosas dos meus olhos!
Abro o armário e vejo-o, num relance —
está ali, naquele frasco transparente,
desde que o encontrei na calçada,
por via de outro relance de um olhar
que nada buscava, mas o encontrou.
Há outros objetos, são muitos; mas é deste
que trata esta súbita captação do olhar
que tenta capturar o tempo da lembrança.
Quando foi... não sei; volta-me apenas
a sensação dos meus passos a esmo
naquela calçada... não sei aonde eu ia.
O esquecimento abre clareiras para
a criatividade dos humanos... será?
Subitamente, dei por aquele brilho
numa pequena fresta das pedras.
Nunca resisti a um objeto como
como aquele; deixá-lo ali, caído,
nem pensar — afinal pode ser útil...
Apanhei-o, acomodei-o no bolsinho
da calça, aquele onde guardo moedas,
em casa, vou colocá-lo no lugar onde
possa ser encontrado, quando chegar
a sua vez de ser útil — sempre há de chegar!
Mas agora, o tempo é uma revoada de urubus
sobre a minha cabeça, sobre a minha carcaça,
e aquele [seu] tempo de ser útil ainda não chegou,
por isto, ele está ali, entre outros, naquele frasco.
Os meus cansaços estão mais difíceis de arrastar,
as minhas pernas talvez não me conduzam mais
com a mesma lepidez por aquela calçada
onde, um dia, brilhou um objeto numa fresta das pedras.
Sim, pesam-me os passos, mas eu ainda não perdi a esperança:
um dia, sim há de chegar um dia em que a vez de ser útil
acontecerá para aquele parafuso de aço inox... um dia!
... Quanto mim, se um dia eu for considerado útil,
se o que eu aprendi servir para algum fim que não antevi,
serei o homem mais frustrado da Terra!
Ser útil é missão para coisas... para aquele parafuso...
Fico na dúvida: mais me cria o esquecimento, o clareador
que liberta minha memória de tramas do passado,
ou a certeza da minha inutilidade, fruída assim,
tão prazerosamente, na soltura destes últimos dias?
__________________________
[Desterro, 23 de junho de 2013]