ABANDONO
Ando a recolher
Todas as palavras que conheço
Para dizer, a quem as ler,
Que não mereço
Tanto esforço
Já baralhei
Demais o seu sentido...
Quantas vezes misturei
O fruto proíbido?
Quantas vezes rimei
Dor com amor?
Pão com chão?
Chão com grão?
Perigo com amigo?
E quantas outras rimas
Que não digo...
Ando a recolher
Todas as palavras que inventei
Para as trancar
No dicionário
E acabar de vez
Este calvário.
Escrever?
Para quê...
Apenas para dar
Prazer a quem lê?
E para quem não sabe ler
Valerá a pena escrever?
E quem tem fome?
Será que também consome
A dor que me vai no peito
Quando não tenho outro jeito
De gritar a sua dor?
Para quê a palavra Amor?
E solidariedade?
Tenho de acabar
Com a maldade
De escrever apenas por prazer...
Escrever só por escrever...
Que vã vaidade?
Há tanta coisa a fazer
Até se poder usar
O palavrão igualdade...
Igualdade de dormir
Num vão de escada qualquer
Na companhia da lua
Que virou sua mulher
Na pedra que não é sua?
Igualdade de viver
Sem saber se vai comer
Outra sola de sapato
Ou mastigar qualquer rato
Acabado de morrer?
Vale a pena dizer mais?
Castigar a minha mente
Sabendo que é indecente
Ver "viver" no meu país
Frutos da mesma semente
Filhos da mesma raíz
Que não conseguem ser gente?
Ver gente tão infeliz?
Não me peçam mais poemas
Nunca mais digam que é lindo
Qualquer um destes meus temas
Mesmo que seja sorrindo...
De que vale a liberdade
- Palavra então proibída -
De escrever o que quizer
Se a dura realidade
É a vida sem saída
Que acontece a um qualquer
Que vai morrer de saudade
De nem ter vida sequer...
Abandono aqui o meu projecto
De guardar palavras por parir
Enquanto houver um "animal" sem tecto
Sem ter onde dormir...
Onde sonhar...
Onde sorrir...
Continuarei a ser o arquitecto
Que sentir
E que puder
Rimarei até poder
Paz com pão
Poema com ilusão
E quando todos
Puderem ler
O que me vai do peito
Irei morrer satisfeito
Seremos uma Nação...
ressoa
99/11/16