Espelho de Narciso

Hoje eu li um poema de Adriane.

Tão bonito. Há tanta ternura naquela sensualidade.

A vida deveria ter sido escrita por ela. Teria sido mais suave.

Mas Adriane não me existia naquele tempo.

E, então, a vida foi como foi. Suja, dura, sórdida.

Primeiro, a merda do Mundo nas Rodoviárias de Minas.

Os canhalhas, os pervertidos. A angústia, a miséria, o aperto.

Depois, os Lobos burgueses torturadores. O Muro, o murro, o choque.

E dá-lhe Pau de Arara, Cadeira do Dragão

e "Crème de la crème" Pimentinha nos olhos, na língua,

que no dos outros é refresco.

Assim foi.

Agora que me despojei dos delírios,

as utopias já não estão opacas.

Vejo-as tão claras quanto são os sonhos inatíngiveis.

Agora eu sinto apenas o conforto da covardia,

da indiferença, da resignação.

Absorvi a miséria que me rodeia

e absolvi quem a sofre sem se revoltar.

Já não lhes tenho rancor e nem os espero na Revolução.

Aliás, nem a Revolução espero mais.

As voltas do Mundo são presas a um eixo só.

São giros que nada geram.

Os desejos são sempre iguais

e as falas são repetidas por todos os atores

que se revezam nessa tragicomédia

que em certo Passado eu pensei ser epopeia.

Às vezes, ali e acolá, até uma luz brilhava quando Bete sorria,

ou quando o uísque me entorpecia e eu me esquecia

do quanto fracassei na luta contra a "Mais Valia".

Mas o lodo, a lama, o pântano, o quartel e a cadeia,

breve, ao horror me devolvia.

Depois, o tempo passou, um brilho grande surgiu

e comigo viveu por duas décadas,

mas o Mundo o requisitou e a cria que fiz se foi.

Restei-me.

Agora é só o tempo da espera. Da última espera.

Abdiquei dos juízos, desiludi-me com o Paraíso

e quebrei todo espelho de Narciso.

Homenagem pouca à Poeta Adriane Lima.