eu só escrevo poesia porque não posso comê-la
Eu só escrevo poesia porque não posso comê-la;
senão comia!
Mas como comer o que sai de minhas entranhas?
Só virando-me ao avesso; com os dentes.
Eu queria mesmo é comer a poesia
beber o poema e
ficar de porre de tanta palavra!
Chegaria num boteco, em Vitória
ou lá em Mesquita,
e pediria sem hesitar:
- Quero uma garrafa de Álvaro de Campos,
um copo de Manoel de Barros e
uma dose de Casimiro de Brito, sem gelo
(porque o poema tem de ser quente).
Não poderia, contudo, mudar o mundo
nem findar minhas angústias:
a poesia continuaria um inutensílio;
mas auto-antropofagizando-me
seria todo expressão, todo palavra:
minha urina seria linguagem
e minha merda, sonetos.
Faria quadras com meu escarro
e produziria com meus gases
contos e romances...
Ah, quantas ilusões...
ilusões sem métrica, sem rima, sem técnica
porque, ai de mim, não tenho técnica nem dentro da técnica!
Sou louco e por isso me dói a academia:
escrever artigos, ser pontual, ser ateu, ABNT...
Tudo isso dói a boca de quem quer comer de colher
sem usar garfo e faca e lenço de papel.
Não, não pra mim.
Conjecturei em sonhos uma carreira:
professor renomado, filósofo pós-modernista,
ir à TV comentar sobre o mundo, a vida, a morte...
Não, não mais, não pra mim.
Estou farto da prerrogativa acadêmica
que legitima a tagarelice intelectual
(mesmo usando da mesma nos meus não raros
momentos de vã filosofia intelectualizada).
Arre, estou de saco cheio de tudo isso!
E não quero encher meu saco, quero encher minha barriga!
Por isso eu comeria a poesia se pudesse;
como não posso, me contento em escrever.