Respiração
escrevo-te gesto simples
como o fluir de um rio
como o voo de um pássaro
como semear a terra
não a qualquer coisa que te eleve acima do mundo
não aos delírios que te enformam deus
não à castidade das palavras
que as palavras são o homem
e nenhum homem é só alvura
por isso grafito nuvens
por isso esta metade homem esta metade pássaro
eu te amo assim
e só assim te bebo e te cuspo
te sujo e me embebedo
a planície branca aos que gostam de pureza
eu te escrevo sangue te ouço eco te bebo brisa
te lanço vômito te xingo e amo
só assim te penetro
só assim te sinto
não à automasturbação solitária
quero o roçar de dois corpos
e a lágrima o sêmen a mordida
o beijo o amargor
o suor nas epidermes unívocas
o fim
como quem bebe num rio
como quem rega uma planta
como macho e fêmea
como vida e morte
não como um redemoinho seco
ou um peixe insípido
escrevo-te sol pulso e movimento
não cinzenta lápide fria coberta de musgo
ou queixume cotidiano
escrevo-te como quem vive
e como quem morre
como húmus
como um sonho que invade a manhã
como um sol que penetra na noite
como um mau presságio
como nuvens carregadas
como as águas que descem pela vertente
escrevo-te vastidão colhida
digerida
compartilhada
como um coração doado
como uma lágrima
como qualquer coisa que fale:
um suspiro um ganido um sinal
não o silêncio intransponível
não a tinta sempre branca e seca
escrevo-te corpo e voo
som e pausa
predador e presa
escrevo-te ciclo do homem
escrevo-te permuta
e nenhuma renúncia a mim mesmo
nenhuma recusa ao mundo
escrevo-te coito gravidez e parto
escrevo-te desprezo solidão e aborto
e tu – cinzel no meu corpo
e eu – cinzel no teu corpo
num fluxo infindável
como o sol para a vida
como pinturas rupestres
como um espelho difuso
como se ver por outros olhos
como se desenhar
e assim
caminhar dentro de mim
e me dissolver nas coisas
e mastigar o mundo
e contemplar tal pintura.