ÂNSIAS DE UMA MULHER

Eu gosto de ser mulher

Não Flor, Cristal, Santa, Rainha do lar

Quero ser mulher: Dandara, Pagu,

Chica da Silva, Luíza Mahin,

Clarice, Bethânia, Benguela, Carolina de Jesus,

Virgínia, Beauvoir

Dividir a maçã com Eva

E me orgulhar de pecar pecar pecar...

Fugir desse tédio vagabundo

Recuso-me ter vindo de costelas

Mas ninguém vem ao mundo sem mim

Meu barro foi modelado por mãos femininas

Não tenho medo do inferno

Pois faço da minha liberdade o paraíso

Minha deusa não me vende culpas

E acorda-me com um sorriso

Quero ter o peso que meu coração sustenta

Conhecer o mapa do meu mundo

Que me leva a prazeres legítimos

Nada de proibido

Tampouco fingimento

Abraçar orgasmos múltiplos

Ouvir os meus gemidos

Entregar-me a delícias, luxúrias, tormentos

Quero borrar minha maquiagem, ou não me maquiar

Sair dessa prateleira

Virar gata borralheira só para provocar

Não me prenda a cores, quero o arco-íris

Não me amarre a gêneros, genesis, gestos

Minha identidade sou eu quem construo

Meus medos, monstros, angústias: detesto

Mas são meus... só meus

Quero pintar o quadro que enfeita minha sala

Distraidamente bagunçar a casa

Jogar folhas por todos os lados

Sem hora, nem obrigação de arrumar

Chegar do trabalho, deitar no sofá

Ler meus livros, escrever poemas

Ouvir minha trilha sonora

Tomar minha cerveja, ficar à toa

Dormir com a televisão

Não me enjaule nas novelas

Quero discutir futebol, política, religião

Descer do salto, ou nem subir

Namorar o mundo e me casar com a solidão

Não! Não sonho com um altar

Não quero ser salva

Quero poder salvar

Sou Terra, Lua, Água, Via Láctea

Sou as cinzas da inquisição

A poeira que absorve o teu ar

Que meu sangue não seja derramado em vão

E meu ventre só irei usar

Se o desejo me partir ao meio

O mesmo vale para todo o resto

Boca, língua, coxa, seio...

Que a mão da covardia seja cortada

E nas madrugadas eu possa sair

Em busca de tudo, nada, ou apenas de mim

Abomino tanques, cozinhas, salões

Me orgulho de um ovo não saber fritar

Danem-se os ditadores

Não quero joias, não quero flores

Quero respeito e o direito de poder voar.