A ENCHENTE
Era alta noite. Caudaloso e tredo
Entre barrancos espumava o rio,
Densos negrumes pelo céu rolavam,
Rugia o vento no palmar sombrio...
Triste, abatido pelas águas turvas,
Girava o barco na caudal corrente,
Lutava o remador ao lado dele
Uma virgem dizia tristemente:
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
E são jovens, bem jovens! Na cabana
Dormiam calmos sem pensar na sorte,
A enchente veio, e no agitar infrene
De um sono meigo os conduziu à morte.
A felicidade é um sonho nebuloso...
A vida neste mundo é sempre assim,
Do gozo em meio a veladora eterna
Nos arranca da mesa do festim!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
- Rema, rema, barqueiro; olha, lá em baixo,
À luz vermelha do fuzil que passa,
Não vês o vulto de um rochedo escuro
Que a correnteza estrepitando abraça?
- Oh se o vejo, senhora; eu bem o vejo!
Diz o barqueiro com sinistra voz;
Pedi à Virgem, que os perigos vela,
Que tenha ao menos compaixão de nós!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
Eis dentre as vagas de caligem densa
Vem macilenta se mostrando a lua;
Como à luz dela a natureza é morta,
Como a planície é devastada e nua!
Perto, tão perto se levanta a margem
Onde fagueira a salvação sorri,
E nós rolamos, e rolamos sempre,
E não podemos aportar ali!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
Duro, insofrido o vendaval soergue
Da onda a face em convulsão febril:
- Barqueiro, alento! Em chegando a terra,
Hei de cobrir-te de riquezas mil.
Porém no dorso do dragão das águas
Lutava o barco, mas lutava em vão...
E a pobre moça desvairada em prantos
Pedia à Virgem que lhe desse a mão!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
- Ouve barqueiro, que rugido e esse
Profundo e surdo que lá embaixo soa?
Parece o ronco de um trovão medonho
Que dos abismos pelo seio ecoa!
- Oh! Estou perdido!... Abandonando os remos,
Clama o infeliz a delirar de medo,
Oh! É a morte que nos chama, horrível,
No fundo escuro de feral rochedo!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
Ia o batel. Ao sorvedouro imenso
Era impossível se esquivar então,
Dentro sentado o remador chorava,
E a donzela dizia uma oração:
Já diante deles entre véus e espuma
Treda a voragem com furor rugia,
E uma coluna de ligeiro fumo
Do centro escuro para o céu subia.
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
***
Súbito o barco volteou rangendo,
Tremeu em ânsias, se estorceu, recuou,
Deu a virgem um grito, outro o barqueiro,
E o lenho na voragem se afundou!
Tudo findou-se. O vendaval sibila,
Correndo infrene na planície nua,
O rio espuma e nas revoltas ondas
Descem dois corpos no clarão da lua.
Como ao rijo soprar das ventanias.
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
Setembro, 1871.