Trago nas mão estas águas

Trago nas mãos estas águas

que apanhei naquela fonte

onde deixei lembranças,

onde o passado persegue

o tempo que escorre das âmbulas

Lá ficaram os meus sonhos,

as horas que te amei

Ficaram saudades e ausências,

Ficou a voz da noite

entre estrelas e miragens

refletidas nestas águas

Nestas águas ficaram a palavra,

o poema insondável,

a lenta madrugada

e as derradeiras sombras e luzes

por onde perpassa a aurora

Trago nas mãos estas águas

e este medo persecutório

que me segue insone

desde a primeira hora

quando o sol se desespera

e reflete-se nas grades das

indecifráveis masmorras,

dos imponderáveis momentos

A luz do sol incedeia e vagueia

num dia que nunca tem fim

e que divide-se desde a origem

dos tempos subitamente abertos

pelo mar dobrado e pelas sonoras

ondas batendo guturalmente

nos rochedos

Trago nas mãos estas águas

e a noite prosaica,

e seus labirintos esbatidos

pela compacta penumbra

que flutua levada pelos ventos

murmurantes do outono

Trago nas mãos estas águas

e no olhar, acendendo-se,

uma nódoa de indiferença

que sopra enfunada como

a vela da soberba

Trago nas mãos estas águas

e nos lábios estas palavras

com as quais busco encantar-me,

com as quais fio meus dias

de extrínseca urdidura

Palavras...

Que são as palavras sem o

correpondente ato?

Que triste sina morrer-se

assim, lentamente, como

os olhos que avistam a

tênue manhã desdourando-se

entre o horizonte e o mar?

Trago nas mãos estas águas

como brasas ardendo nas

merencórias manhãs,

círios perenes acesos no

escuro das ânforas onde

escondi meu mundo incerto

e os sonhos feitos destas águas

que trago nas minhas mãos