Uma fábula de ano novo

Ano novo

Novo?

Perguntou a dona formiguinha

ostentando entre as pinças

um folha bem verdinha

Ano novo... murmurou alguém

lembrando de anos passados

os olhos úmidos de ausência

a vida uma nau sem porto

e ano após ano os mesmos quereres de novo

Novo?

Perguntou novamente a formiguinha

que ainda seguia firme com sua folha verdinha

Os dias são tão frágeis

A vida um sonho efêmero

uma sucessão de instantes aleatórios

Incriados ventos escutai os

nomes escritos na areia por onde caminham

as ondas de passagem pela praia

e retornam inabordáveis ao velho mar

que em sendo velho parece ser sempre novo

Novo?

Perguntou mais uma vez a faceira formiguinha que tendo

percorrido todo o trajeto desde o jardim até

o formigueiro, depositou o seu troféu clorofílico

e pôs-se a pensar no que viria a ser "novo"...

A formiguinha pensava, pensava...

A vida dela era uma rotina: sair do formigueiro cedinho,

dirigir-se a algum jardim e, lá chegando, cortar e transportar

folhinhas (para ela eram folhonas) para o formigueiro

Não procurava pelo novo

assim como não lhe interessava as falsas primaveras

A terra escura por onde caminhava

não lhe parecia nova

Nem tampouco a gota d'água que lhe impedia o caminho

A chuva que caia e que doia como um soco?

Dona formiguinha não etendia o que havia de "novo"

nas pedras sujas de terra que encontrava pelo caminho

A bem da verdade continuava a não entender o que era

o tal do "!novo"

A tarde já ia caindo em vermelhos e laranjas

e o mar espelhava a mistura de ocaso e noite

que já começava a desenhar-se em sombras sutís

O sol já banhara-se nos ventos e se preparava para dormir

A formiguinha olhou para o sol e pensou:

amanhã ele estará no mesmo lugar e todas as demais

coisas do céu e da terra também estarão

em seus mesmos lugares

(---)

Vou-me embora, disse a formiguinha...

estou cansada

e recolheu-se ao conforto do seu formigueiro

A formiguinha adormeceu,

mas dormiu pensando no "novo"

E pensou tanto que sonhou...

sonhou com novas ilhas

sonhou com céus constelados

com a ventania, e teve medo

com a solidão e chorou tristemente

sonhou com o frio do inverno

e a beleza da primavera

e as anáguas azuis do céu

e sonhou com novas paisagens

e antigos desertos onde a vida foge

e as miragens que criam simulacros da vida que fugiu

Sonhou com louvas-Deus

de mãozinhas postas como quem faz uma prece

sonhou com borboletas que pousavam

nas flores da beira do rio

e que eram tão coloridas quanto queria

o sono da formiguinha

sonhou com a chuva caindo e ela se abrigando

sob as pedras sujas do caminho

A formiguinha sonhou... sonhou...

De manhã quando ela acordou

a formiguinha sentou na beirada da cama,

esfregou os olhos,

balançou os pezinhos no ar, feliz

o coração batendo irriquieto

e começou a lembrar dos sonhos

e quanto de emoção havia nas lágrimas

ou no riso que podem trazer os dias

e entendeu que, a bem da verdade,

o "novo" não estava nas coisas, mas, sim,

na alma e nos sentidos de quem vê as coisas

Sentia que não podia existir o novo para a alma velha,

para a mente velha

vestida de antigamente

Sentia que não poderia mais beber da sede

sem transbordar o cálice

Pela janela via o dia esplendendo lá fora

O sol estava em seu lugar no mundo

O riso e a lágrima também estavam em seus lugares

A natureza estava toda em seu lugar no mundo,

porém tudo sabia-se novo

No caminho entre o formigueiro e o jardim

várias florezinhas brotaram durante a noite

e também estavam em seus lugares no mundo

entre o pensamento e o ser

Os pássaros cantavam longamente, alegremente pela ilha

e a liberdade atravessava os céus

Aflorava a reinvenção da vida, o inédito

e ficava uma certa nostalgia

esperando a reinvenção dos olhos

e da atitude perante o novo

E a formiguinha dançou ao descobrir o que era o "novo"

Estremeceu ao observar como, apesar de toda uma ordem

pré-definida, o Universo tão vasto, como, ainda assim,

o mundo poderia ser do jeito que ela quisesse

Naquela manhã a formiguinha vestiu-se de toda a sua pureza

e foi cortar suas folhinhas, porém ia atenta a si para que

o passado e a falta de visão dele decorrente

não lhe limitassem e a impedissem

de ver o novo que há em todas as coisas,

e em todos os dias cheios de fins e começos

e que são novos na essência

e que cada ser possui a sua cosmogonia e o seu devir