Elegia de um casamento naufragado
(uma história real)
 
I – O casal
 
Formavam um par bonito;
Casaram, tiveram filhos.
Nas voltas que dá a vida
Logo ele saiu dos trilhos.
Bebendo cada vez mais,
No labor rendia menos,
e do lar fugia a paz.
Nunca eles passaram fome,
Nada faltava aos rebentos
(Garantia o avô materno).
Nem tiveram senhorio,
Porque, prevenidos, teto
Ergueram - de amor e sonhos,
Abundantes no começo,
Esvaídos na rotina
Da casa perto do rio.
Viver assim, impossível;
Premente curar o moço.
- Moído, junte à comida.
Ensinou sabido médico,
Receitando comprimido.
Cabreiro, enjeitava o prato...
- Sei de simpatia forte.
Sugeriu uma comadre.
- Sara até caso de morte...
Inócuas as tentativas,
Nada solvia a questão.
Inútil reza pra santo,
E fazer tanta promessa
Ou cantar na procissão.
 
II – O Curandeiro
 
O sopro do vento sul
Trouxe um dia o curandeiro.
No bairro fixou morada
E instalou o consultório
Na sala de cor azul.
Arrebanhou a clientela
Carente atrás de consolo
Pro espírito torturado
Ou cura do corpo enfermo.
(Qual doente mais padece:
A alma, em sua perenidade,
Ou a efêmera carcaça?)
Figura de natural
Carisma. Rosto sereno.
De tão bom comportamento,
Coimava vício e cachaça.
Esbelto, com pouca pança,
E porte, se não atlético,
Pra fracote não servia.
Bem vestido e fala mansa,
Sempre chapéu de aba estreita.
No berço de um antebraço,
Inseparável o rádio
De pilha e três faixas de onda.
Nos reclames espalhados,
Prometia abrir caminhos,
Acertar vida de gente,
Imolando com punhal
Pobres galinhas vermelhas,
A morrer devagarinho.
Banhava na água das ervas
Pessoas de ambos os sexos.
Macho e mulher anciã,
Banho só de canequinha.
Fêmea jovem e bonita,
Forjava as mãos em conchinha.

III – O trabalho
 
Pra abandonar a maldita
O marido, ela dispunha-se
Fazer qualquer sacrifício.
Então foi ao curandeiro:
Banho urgente! Muito esperto
Prescreveu sem cerimônia.
À noitinha e o consultório
Fechado. Devia ir só,
Pra não espantar o guia.
Luz de velas coloridas,
Cheiro e fumaça de incenso,
Morna água, grande bacia.
Do candomblé fez o rito,
Misturando na água tépida
Uma infusão de sete ervas,
Carregada no alecrim,
Onde ela sentou-se nua.
Dispensando a canequinha,
Mãos unidas em conchinha,
O banho então começou.
De joelhos, os cabelos
Densos da moça encharcava.
A água descia em cascata,
Cheirosa, e o rosto molhava;
Beijava em seguida os ombros
E tão suave o costado.
Depois da festa nos seios,
Brilhava na barriguinha,
Pra morrer lá na bacia.
Excitado, o curandeiro
Afrontava a própria fé,
Fingindo-se incorporado.
Esquecida do alto, a concha
Apanhava água nos pés
E despejava entre as coxas,
Que, resistir não podendo,
Abriam-se sempre mais
Em uma instigante fresta
Onde ele meteu os dedos
E depois sua mão destra.
Cerraram-se os olhos dela
Sentindo o ouriço dos pelos
E os lábios dele nos seus.
A palma da mão vazia
Descortinou o segredo
Que um só homem conhecia.
Amparada pelos punhos,
Ela então se pôs em pé;
Deu dois passos e mais um.
Louca de felicidade,
Quedou-se frouxa na cama,
Molhando o branco lençol,
Pra romper sua promessa
Frágil de fidelidade.
 
IV – O amante
 
Assim abrira o caminho
Tão ladino curandeiro,
Conforme ele prometera.
Soube ela que havia muito
Afundara o casamento
No oceano do infortúnio,
Que a sorte lhe reservara.
E foi-se entregar depressa
Ao primeiro dos amantes.
Ele, de motocicleta,
Parava na rua escura.
Ela chegava de saia,
Sentava-se de ladinho,
Agarrava-lhe a cintura.
E corriam a um lugar
Onde gemiam o amor
Isentando-se da culpa.
 
V – O fim
 
Na ensolarada manhã
Do tal sábado de Judas
Um menino deu alarme
E propagou-se a notícia:
Encontrado um homem morto
No mato do lugarejo!
Que Deus o perdoe e acuda...
Junto ao riacho, jazia
Em curvatura fetal,
Parecendo ter saudade
Do útero da velha mãe.
Garrafa ao lado, vazia,
Companheira no relento.
Foi o epílogo de um ébrio
E também de um matrimônio
Naufragado havia tempo.


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N. do A. - Na ilustração, Depois do Banho de Pierre August Renoir (França, 1841-1919).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 21/01/2013
Reeditado em 02/09/2021
Código do texto: T4096312
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