Canteiros

Minha casa não tinha jardim,

mas tinha um canteiro de flores,

colado ao muro,

onde a chuva que caia do telhado no quintal

respingava nas plantas o gosto imanente das águas

No canteiro havia

rosas rubras feito um soneto a um amor antigo

cravos brancos e as rimas rugosas

das suas pétalas

pequeninos pés de maria-sem-vergonha

multicores, pintadas pela luz macia das estações

margaridas de um amarelo pra vida inteira,

antúrios e suas flores fálicas

Tinha outras flores que ficaram pelo tempo

Outros tempos que ficaram neste rosto

que busca o passado do outro lado do espelho

Nas lembranças, visitantes noturnas,

que me dizem coisas da infância

Nesta mão trêmula de agora,

Nestes olhos que quando olham olham o mar

e as praias ao crepúsculo tecendo cores túrgidas de sol e sal

e os passos na areia fofa que vão ficando como um sinete

do silêncio que me leva ao mar

e o ser fechado para a poesia

que tateando na escuridão ignota

faz das palavras

pássaros sem asas

Do canteiro e sua floração saiu a primeira flor

para a primeira namorada,

Enquanto entregava a flor,

a meninada na rua,

devagar, soprava

diáfanas bolas de sabão,

translucidas,

que o vento levava

até onde os anjos brincavam

com as crianças,

soprando-as,

com suas bocas sonhadoras

no ar azul da tarde bordada de sol,

perpassada de sonhos e de faz de conta,

onde brilhavam pequeninas gotas de chuva,

ornando a verde folha,

escorrendo pela pétala

reordenando, suavemente, a beleza da natureza

Nas noites sem lua a negra cortina escondia o canteiro

Noite sem estrelas,

só mantos de nuvens

onde a meninada construía os seus sonhos

e os seus medos e o medo do medo alheio,

noites imensas na escuridão,

longe da primavera

soprando a brisa vinda de um mar intangível

ondulando os lírios brancos

e as rosas em suas longas hastes

dentro de uma noite antiga a despedir-se

É preciso lançar os barcos aos mares

como as folhas que caem na correnteza dos rios,

e são levadas pela pureza dos anjos

É preciso o escuro da noite,

sem lua,

sem estrelas,

para ouvir as antigas vozes,

a primeira lágrima

de um antigo amor,

de uma nova saudade

É essencial cultivar os canteiros

e as palavras

que podem ser flores,

mares,

amores,

poesia,

pequenos gestos de amor

dentro de um amor imensurável

o azul e a sombra do azul,

o sonho que

dorme náufrago e anônimo na minha existência

É essencial cultivar os canteiros

e o inaudito murmúrio dos ventos.

o belo,

o encanto,

o indescritível

É essencial resgatar

a inefável alegria da infância

As manhãs, sejam azuis ou cinzas ou douradas,

caminham sem tempo que as tolham,

sem ruídos de agoras

trazem o canteiro da infância

e as flores vicejam

por entre as emoções que irrompem

somente no absoluto da poesia

inexprimível

como os ventos imponderáveis

No canteiro do meu quintal há flores no outono,

do outro lado do nevoeiro

por detrás de qualquer domingo

no qual se ouve ao longe uma flauta que toca

para nossos sonhos imaturos

sedentos de estesia

como o amor sedento de amor

como o poeta sedento de um verso

meigo e suave

como o beijo de um colibri

como o sorriso de um palhaço

como o amanhecer que floresce nos quintais

das infâncias imperecíveis

e onde começa a infinda poesia