Re-partida
A madrugada tem lá seus efeitos. Acredito que de todas as partes do dia, a madrugada é de certo a que me parte ao meio. Se busco algum vestígio de mim, meu nome já não o recita. Estou perdida, sem ida, no eterno luto das voltas. É como morro a cada dia, desfigurada em mil partes. Partida infinita que se repete, cedo ou tarde.
Parte I
[Quando eu morro com a boca]
Minha ânsia pelo seu beijo, que distante
Faz morrer, em minha boca, a palavra, come
E me engole, em um gole, meu próprio nome.
Devora a minha fala.
Parte II
[Quando eu morro com os ouvidos]
Um dia gritei para o abismo:
- Qual o sentido da vida?
Ele respondeu:
- Viiida... Ida... Ida...
Insisti:
- E o que é amor?
- Amoor... Mor... Mor...
E assim se sucedeu nossa conversa surda,
Entre as perguntas sem respostas
E as respostas sem perguntas.
Parte III
[Quando eu morro com os olhos]
O olhar não é indeciso.
Olho, mesmo antes de decidi-lo.
No esforço de selar essa vista exagerada,
Cerro os olhos,
Durmo,
Cego a alma.
Parte IV
[Quando eu morro com o nariz]
O cheiro que me mata
Não é o da loló,
Tampouco o da cocaína.
O cheiro que acaba comigo
São os das rosas que você nunca me deu.
Parte V
[Quando eu morro com a pele]
Tocar-te é sentir minha própria mão,
Perceber minha existência material.
Se nada toco, se a nada me lanço, então
A borda torna-se irreal.
Parto
[Para sobreviver]
Essa jornada tem cheiro de flor
Trilha para fora do caminho do trem
Percurso de paisagens simplórias, dor
De um lado só mato, do outro só morro.
Ando, sem foco, por entre as montanhas do ser
Há tanto medo! Há tanta chuva!
Não há onde se esconder.
Vou para o inferno só para me testar,
Mas volto coagida, de tanto queimar.
E teimar. E amar. E apaixonar. E ficar louca.
Para depois não agüentar mais.
Pulo no abismo. Retorno ao ventre.
Depois da ferida vem o colo quente
(nem sempre).
É necessário muito ar,
Muito mar,
Muito sangue para navegar.
Não preciso de um Norte, mas canso de estagnar ao Sul.
Quero um ponto que possa estar para além do céu azul
E além do dentro de mim.
Respiro, tomo fôlego, busco algo, um olhar...
De onde vem esse vazio, poço sem fundo, essa vontade de me matar?
Faço um barco, pelejo por entre aquelas rochas estreitas
Pela minha garganta só desce a cerveja.
E sei que se eu subir, talvez chegue ao guardião dos sonhos.
Não sei se a viagem está dentro ou fora,
Mas quero toda e qualquer droga.
Olhe ali! É uma miragem? É uma prisão?
O que é o sim diante do não?
Caminho diante do enigma, diante da terra inexplorada
Se eu não der sentido à encruzilhada
Fico no breu, perdida,
Sem rumo, sem ponto...
Sem chegada
(re-partida).
A morte parece ser o alvo da vida. Como inverter a ordem dos ponteiros quando a lógica parece tão definida? Se o caminho se dá para morte, não seria emblema da vida andar para atrás? Não seria emblema da vida resolver o problema dos nossos pais? Não seria, viver, um esforço por retornar? Tornar a ré; desandar a volta?