servimos vódica

no mofo dos cobertores

de um quarto em que não volto desde nunca

procuro na memória dos lampiões

um fogo antigo

um cheiro e um arrepio

de contos noturnos

de uma alma iluminada

- servimos vódica, senhor!

me desafia o garçom

- toca “O Bonde do Dom”

me redime a menina

e as hortênsias se riem azuis de mim:

vermelho

e me batem a porta dos olhos:

amarelos demais

- e quede Ana Clara?

ninguém sabe da indecisão dos olhos de Ana Clara

das sardas da voz

do nome do amor de Ana Clara

nem dos anéis

- servimos vódica, senhor!

e por onde andaria Jenifer?

jamais serei homem o bastante

para erguer a mãe de Jenifer do chão

e dar a ela um cobertor

um graveto para a chama

um resto de álcool

de mim

eu não sei mais de becos

nem de mães

nem de Anas

nem de olhos

nem de hortênsias azuis

- servimos vódica, senhor!

mas me comporto tão bem!

que levo vidas para sorver

dois litros de mim

e a menina canta

e tão bem!

que toco o samba

feito qualquer coisa que doa

e muito

feito arrepio

e cheiro antigo

de canções eternas

e noturnas

de almas que cantam

em cidades de flores

em cidades de sambas

e valsas

e tangos

e vazios

e violões

“... é o Bonde do Dom que me leva

os anjos que me carregam...”.

choro o cheiro que não sei mais

daquele quarto antigo

daqueles contos noturnos

daquela alma iluminada

presente em cada canto de mim

- sim, uma vódica, por favor.

Capiau da roça
Enviado por Capiau da roça em 12/12/2012
Reeditado em 12/12/2012
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