servimos vódica
no mofo dos cobertores
de um quarto em que não volto desde nunca
procuro na memória dos lampiões
um fogo antigo
um cheiro e um arrepio
de contos noturnos
de uma alma iluminada
- servimos vódica, senhor!
me desafia o garçom
- toca “O Bonde do Dom”
me redime a menina
e as hortênsias se riem azuis de mim:
vermelho
e me batem a porta dos olhos:
amarelos demais
- e quede Ana Clara?
ninguém sabe da indecisão dos olhos de Ana Clara
das sardas da voz
do nome do amor de Ana Clara
nem dos anéis
- servimos vódica, senhor!
e por onde andaria Jenifer?
jamais serei homem o bastante
para erguer a mãe de Jenifer do chão
e dar a ela um cobertor
um graveto para a chama
um resto de álcool
de mim
eu não sei mais de becos
nem de mães
nem de Anas
nem de olhos
nem de hortênsias azuis
- servimos vódica, senhor!
mas me comporto tão bem!
que levo vidas para sorver
dois litros de mim
e a menina canta
e tão bem!
que toco o samba
feito qualquer coisa que doa
e muito
feito arrepio
e cheiro antigo
de canções eternas
e noturnas
de almas que cantam
em cidades de flores
em cidades de sambas
e valsas
e tangos
e vazios
e violões
“... é o Bonde do Dom que me leva
os anjos que me carregam...”.
choro o cheiro que não sei mais
daquele quarto antigo
daqueles contos noturnos
daquela alma iluminada
presente em cada canto de mim
- sim, uma vódica, por favor.