Escrevo a poesia que ninguém lerá

Ao longe a música chia

no antigo gramofone do dia

quente deste final de novembro

apagando o trinar dos passáros

que os céus levam até o mar

debruado com as velas ao vento

dos barcos executando os acordes

das canções de alguma infância

Gaivotas voam acima dos meus medos,

acima das canções inacabadas,

da angústia inútil de não esquecer

e da poesia escrita na bruma da manhã

estampada na primeira hora

atada ao dia que veio com o vento

na primeira flor

na primeira dor

Escrevo a poesia que ninguém lerá

Escrevo para as sombras

da minha infância

Escrevo porque sinto

e porque a palavra me liberta

E é esta é a minha culpa maior:

dizer o que não fui,

falar do inapto que ainda sou

Só o que sinto

e o que minto

de mim para mim

é o que fica de mim na aléia

por onde caminha o Mistério

na poeira quente das estradas

sem encontros,

nem companhia

Ando a olhar para o céu

buscando no trilar das aves,

os pássaros origami

que me habitam

e me trazem, assim,

este amor impossível

pela coisas instadas,

pelas estrelas

e seus poemas,

que não se extinguem

e movem-se sem cessar

ao nosso encontro?

No velho espelho contemplo

a chama da infância

Tuas mãos pequeninas

aquecidas ao sol

de um inverno ofuscando,

os teus olhos negros,

teu corpo recendendo

à paixão e à ternura

Da janela do quarto

ainda vejo dormir a noite

Vejo dormitar o passado

sob a luz de candeia

de uma lua iluminando a alma,

sem, no entanto, separar

a solidão destes versos

que me sopram

Os pássaros regressam de muito longe

atravessam a noite,

inocentes,

desfazendo o silêncio

com o branco das suas asas

Procuro no escuro,

tateio suas silhuetas esguias,

da onde virão?

Trarão um ramo no bico?

Os pés molhados de mar?

Em meio as estrelas adormecidas

a lua irrompe pela janela dos sonhos

Encosto a mão na face molhada do sono,

digo um segredo,

calo um grito,

sussurro o desejo de partir,

sentindo a areia fria das dunas

como se a areia houvesse sido o meu mundo,

só e esbatido pelas gotas de sereno

que serão o orvalho da manhã sem nome

e que não demora a chegar na praça

acordando os pombos e os seus arrulhos

balançando as matas ao rumor do dia

lançando as primeiras gotas no mar

resplandecendo nos rochedos

caminhando para o verão

perfumado de primaveras,

refletindo luzes de outonos,

sob um céu nacarado de inverno

As nuvens passam singrando os céus,

barcos de algodão,

rendas no jardim onde brotam

os versos que podem dizer às almas

o ouro da liberdade latente no átomo

imarcescível de cada novo dia,

abstrato como o papiro

a escorrer as palavras do que seria

um poema

ou a chuva caindo

errante

e terna