Cantiga
Escondia-me, vez ou outra
no quartel de um fim de terreiro
de um fundo de quintal
- Mas que tal ali, em riba do muro?
havia guardas ali e acolá
soldados que nem sombras
que nem sonhos
que nem sonhas...
e eu lá sonhava o quê?
não imaginava nunca a lealdade
daqueles tempos sem amor
- Evoé, grandes muralhas!
- Evoé, grandes almas!
mãe seguia pra ensinar
filho besta a escrever
pra filho besta ter o que comer
pra filho besta não ter medo do quê?
e eu que nem aí
e eu que mesmo em grilas
e eu que mesmo em fossas
e em mangueiras
e jabuticabeiras
e pés de amoras
e eu que mesmo em beiras de corgos
e em meios de matos
e eu que mesmo fiz tão pouco de mim
quando eu mesmo tanto valia
tudo um descuido
tudo desculpa
tudo e tanto e tão pouco
e mesmo o pranto
e mesmo o cinto
e mesmo a vara
e a marca
e o nó
e a taquara
a "tramela"
e a janela vedada
pra não deixar gritar:
a palavra tanta que havia!
e mesmo tudo que nem pudesse sangrar
e mesmo todo o impossível de poder destruir
e diminuir
nada não me desanimava tanto
quanto a palavra:
nem pedra
nem pau
nem o próprio pai
em minha primeira roupa de vida
em meu primeiro nu
eu juro que vi
quando mãe me chamou
meu nome ecoando léguas de mim
e eu nem bem me conhecia
e já devia me inventar
um outro qualquer
um assobio indefinido
feito um redemoinho de fim de tudo aquilo
e que eu fosse o que não devia ser
um "oio" fundo de um rosto qualquer
bem verde e azul
e vermelho e mulher
um cheiro de café
talvez me acalmasse
naqueles meus rincões de fundos de mim
mas sei que cheiro nenhum se ouvia
mas uma música ao longe
dançava, eu sei
e eu rio, agora
de tão besta
de tão crente
de tão nada!
ainda é noite lá fora
e quente
Ah, Deus...
Deus deve jurar que aquela canção existia
que aquela canção era minha
que aquela canção...
Deus deve jurar