Preciso
Preciso
Espargir a flor
com a água da concha das mãos
Cantar a canção
Entender a folha branca da ilusão
Restituir ao poema
a verdade com a qual te amei
Esperar no precário minuto
o penhor de outra noite
outra manhã
Acordar a manhã
e mergulhar meus dedos em teus cabelos
Acordar os anjos e o menino do retrato
Beber do orvalho
o alivio para a sede eterna
Preciso
Apagar o desespero
dos passos presos na areia,
presos nos espelhos
dos sonhos ante o meu rosto
Expressar o suspiro
o sussurro ermo e terno
a saudade sozinha
Pressentir da existência o segredo
Ter um motivo para ouvir o verso
se agora ando desperto
e o verso é sonho sílfide em meio ao mar
Calar a voz da mentira
Tecer a delicada liberdade
Preciso
Esperar a carta
(que já não se usa mais)
que cheirava a cravos rubros
amarelas rosas
que trazia teu aroma espanhol
e, por acaso,
um fio do teu cabelo
desejo e ânsia que o dia trazia
como essência nas tardes
que eram só nossas
Preciso
De um amigo
(e quem não precisa?)
que possa escrever a carta
que ainda espero
Um amigo que saiba da consumação
inelutável do existir
e do silêncio que pode haver
nas palavras
e do encanto que pode haver
nas palavras
e das palavras
que podem haver nas palavras
fios da urdidura da serena
humana alma
Um amigo que fale de nostalgias
e que tenha brincado em ruas de terra
na infância
com seu pião batinha
com sua bolinha de gude matadeira
Um amigo que colha estrelas
nas noites pintadas à mão
Que leia a poesia
e não reprima a lágrima
ou o riso sem explicação
Um amigo que saiba do meu sonho
e saiba do encanto que os sonhos têm
e do devir que os move
Um sonho que engane as noites
que o próprio sonho desfaz,
ah! amor, tão frágil é o passado
tão lindo o vento na acácia
e nos cabelos das meninas
Preciso
Dos dias vagabundos
Das ruas de terra
Das enxurradas
Das flores primordiais
Da voz negra da noite
Dos teus olhos,
prenuncio das noites
envolvendo o mundo
Preciso
Do sono em teu colo
Da inocência nos teus braços
Da meiguice nos teus olhos
Da nudez casta
e ofegante nos teus beijos
Preciso
Perder a hora
e a compostura
Bater à porta da lua
Perder os sentidos
Mudar-me
de vez para a infância,
para aquela rua Maria
Incendiar a palavra
que me define neste instante
Escolher a mão esquiva
e o gesto que dorme
entre as nossas mãos
Peciso
Continuar
apesar do meu medo
Acostumar
meus olhos à escuridão
Fingir
que não sei da guerra
Chorar
a dor soterrada do homem
Suprimir
em todos os corações a indiferença
Aprender
um novo idioma
Dormir
o pranto e esta melancolia
Colocar o passado em seu lugar
Ver crescer o outono
e as folhas que caem longe
do engano das horas,
longe do mar
Ter tempo,
sobretudo,
para o morrer
da irresoluta persona
e, então, calar os ventos
Guardar, silenciosamente,
a tua ausência
Preciso
Desta solidão
com o seu manto de sombra bordô
vinda com o ocaso do dia,
pulsando a noite que se inicia,
suspiro de harpa,
rumores de poesia
Preciso
Desta solidão
onde começa e acaba o ser