O sono da tarde

O sono da tarde beijou a noite

Seus olhos se fecharam docemente

e o escuro, levíssimo, pairou sobre as ruas,

os pensamentos e as vidas

Lá fora,

eu vi agora,

há somente estrelas pintalgadas de azul,

nuvens fofinhas passando bem devagar

e uma lua guiando as estradas de terra

nos caminhos que vão dar no mar

O mar é longe, menina

O mar é onde?

O mar é onde o nácar translúcido dos meus sonhos

empresta à vida estas deléveis perquirições

feito pássaros azuis que voam no dia escasso,

num sol poente que rouba o vermelho do teu vestido

e satura o horizonte e exaure o verso

que depois de ti foi só saudades

Da tua ausência fiz o meu redor

e o tempo que não se extingue

como o mar batendo nos rochedos

molhados pelo sal,

úmidos de serenos e enganos que as ondas trazem

o tempo compõe o menino que te adora e não te esquece

Faz muito tempo que o mar bate nos rochedos,

às vezes com estrondo,

às vezes como doce carícia,

vontade de amar sob a nudez de uma lua branca

Esta lua especiosa que se espalha no mar,

diáfana,

imóvel,

aguardando a lesta manhã

aguardando os lábios e a mão do poeta,

o consolo das suas palavras

e a pequena flor em sua lapela

A noite fechou os olhos

Já não quero noites,

nem luas,

nem mares,

nem flores,

nem chuvas,

nem amores

Quero qualquer coisa que traga no tempo certo

a inquietação dos circos da minha infância

e a recordação primeva do amor que foi criança

e como criança amou sem pensar em amar,

sem pensar em nada que não fosse

o acalanto singelo do teu corpo

beijou sem saber beijar,

sonhou deitado em teu colo

ouvindo o silêncio... longe

tão longe...

Impossível atinar com o que o silência dizia

Eu só compreendia você

e o lindo esboço de mulher que você era

deitando os teus segredos nas nossas tardes

Teus olhos negros como um rútilo arco-íris

de todas as cores

Negros como a noite que fecha os olhos

e tudo em volta se enovela em escuridão

No interior da noite escura e rutilante

um menino querubim escreve teu nome

em todo o tempo perdido,

em toda palavra não dita

em todo o silêncio que nada diz

e que, no entanto, não deixa que fujamos

para as cidades hipotéticas do atlas geográfico,

a grande fuga...

que me sustinha em seu vulto,

mas que nunca aconteceu

pois que o mundo existia só em você,

na sua presença sem razão maior

a não ser o nosso afeto

na sua ausência sem razão maior

a não ser o tempo que passou sem responder

ao amor que era para sempre

e que terminou num dia plangente como o de hoje

onde uma chuvinha fininha cai

enquanto o tempo envelhece alheio a nossa vontade

Lá fora o céu toca o chão e se confudem

as copas verde das árvores

com o cinza úmido e os caminhos insuspeitos dos anjos

A noite fechou os olhos

Dormem as árvores,

dormem os anjos e suas verdades

Enchem o quarto e velam minha noite

os versos que falam de ti,

os gestos a me lembrarem de ti

A vida girou a roda e tudo agora

é este invísivel cansaço,

pois que sendo o amor um arabesco

talhado na alma como desfazer o elo

que está na ilusão que fica para além,

para além do amor

em algum reino profundo

onde habita,

numa ilha,

o menino que te ama