TU ESTÁS AQUI (RUY BELO)

(Ruy Belo foi um dos maiores poetas portugueses da segunda metade

do século XX, tendo as suas obras sido reeditadas diversas vezes.

Destacou-se ainda pela tradução de autores como Saint-Exupéry, Montesquieu, Jorge Luís Borges e Federico García Lorca.)

Estás aqui comigo à sombra do sol.

Escrevo e oiço certos ruídos domésticos

e a luz chega-me humildemente pela janela

e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou.

Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano

e tudo o que faço ou sinto, como que me veste de um pijama

que uso para ser também, isto, este bicho de hábitos,

manias, segredos defeitos, quase todos desfeitos.

Quando depois lá fora na vida profissional ou social, só sou um nome e sabem o que sei, o que faço, ou então sou eu que julgo que o sabem,

e sou amável, selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras e sei que, afinal, posso ser isso, talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa, esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço, bem entendido o que faço com este braço.

Estás aqui comigo e à volta são as paredes

e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa

e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto, aqui é a casa de banho,

e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer.

Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado

passado nas pernas de sala em sala.

Sou só estas salas, estas paredes, esta profunda vergonha

de o ser e não ser apenas a outra coisa, essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol.

Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso diante dos dias.

Que ninguém conheça este meu nome, este meu verdadeiro nome

depois, talvez, encoberto noutro nome embora no mesmo nome este nome de terra de dor de paredes este nome doméstico.

Afinal fui isto nada mais do que isto as outras coisas que fiz

fi-las para não ser isto ou dissimular isto a que somente não chamo merda, porque ao nascer me deram outro nome que não merda,

e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir

uma coisa das outras coisas.

Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa uma coisa para além disto que não isto.

Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo.

É das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos,

mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos, tu és em cada gesto todos os teus gestos

e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam

certas palavras como palavra paz.

Deixa-te estar aqui e perdoa que o tempo

te fique na face na forma de rugas.

Perdoa pagares tão alto preço por estar aqui.

Perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui. Prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente.

Deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias

e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer

sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

(Um dos mais belos poemas da língua portuguesa:

TU ESTÁS AQUI, de Ruy Belo in Toda a Terra, Todos os Poemas)

http://www.youtube.com/watch?v=Jh-fK-DNIgM

Ruy Belo
Enviado por Ana Flor do Lácio em 10/11/2012
Reeditado em 10/11/2012
Código do texto: T3978175
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