II-CANÇÃO DO DESERTOR

 

Pra que lutar uma guerra que não é minha?
Pra que manchar o céu com minha vergonha,
e o chão com os efeitos de uma baioneta?

Fica por aqui o elmo, o escudo e a lança,
o capacete, as granadas e as esperanças.
Fica por aqui o papel em branco, a lama e a tinta,
a lente de aumento, as incógnitas e as mentiras.

Entrego a bandeira, ao fogo de uma pira,
os distintivos às covas de amigos mortos,
entrego as muletas à encruzilhada da vida,
e a bravura à parafina de um ex-voto.

Sem olhar pra trás, tudo vira clichê de cinema,
com a luz descendo num horizonte indeciso.
Vendo ao longe os aviões lançarem bombas,
e de perto, os poetas me sufocarem aos poucos.
Hoje não há sequer direção de arte,
para tornar equilibrada a cena de despedida.
Enquanto sumo, nestas terras queimadas,
o cenário atrás de mim é desmontado.
E as personagens têem suas falas esvaziadas.

Esta guerra nunca foi minha,
por isso entrego as significantes e os significados.
Entrego a filosofia e os paraísos guardados,
as lágrimas contidas e esqueletos de poemas inacabados.

A quem fica, para lutar pelo que se perdeu,
até gostaria de aconselhar, mas não tenho mais fé.
Tornar-se o que se é, ou perder-se no que nunca se foi,
é escolha de cada um, num campo de batalha artificial.
Todas as escolhas matam,
todas as verdades mudam.
Todos os espíritos envelhecem,
e mais cedo ou mais tarde,
todos os guerreiros desistem.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 04/11/2012
Reeditado em 04/11/2012
Código do texto: T3967672
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