O mal do tempo literal
Sofro do mal do tempo literal. E esta moléstia é de cura improvável.
A palavra de ontem, que me vestia como em noite de debute, maquiava-me com a candura dos pinceis de artista, hoje me deforma.
Ridiculariza-me como os sapatos de palhaço.
Apertam-me como longos saltos de brechó.
Tenho o mal de deixar que as letras me moldem carinhosamente à curva d´um peso que se desfaz em plena aurora.
Restam vácuos, horas depois... Obsolescências de um ser fadigado com os excessos que desfilam nas calçadas deste mundo regido pela ditadura de serem todos Especiais.
Mas meu verbo de ontem já não sou eu. Já não é meu.
Canso-me de tantos poetas de esquina, sofrendo seus problemas de todo mundo e transformando-os, pelo dom da palavra, em coisas surreais. Canso-me deste supermercado de palavras que abarrotam os livros e as telas - mas devem ser breves e superficiais para alcançar leitores famintos por frases feitas, ideias banais, metas mecânicas.
E elas vão entupindo os ouvidos, as bocas... Ensurdecem e pouco dizem além do lamentável e surdo grito do EU.
Por isso, sou filha rebelde da poesia. Como tal, não me intitulo poeta: não levanto seu brasão.
Como cativa, a tenho na face e nos olhos, noite e dia, mas pouco permito que ela se condense em letras num mundo de analfabetos sentimentais.
Sim, também sei ser prolixa – e muito! Também sei ser clichê. E o faço muito (o mal do EU está de mãos dados à poesia, é bem verdade).
Talvez por isso eu me retire com certa frequência...
Caminhar por aqui parece inoportuno.
As ruas estão cheias de poetas, todos gritando seus versos numa grande feira. Há poucos ouvintes... E, DEUS (!), como temo a vaidade da arte...!
Temo o peso do meu olhar sobre outro, as rédeas da minha fala e a prisão dos meus conceitos. Temo que o mundo vire estátua de cera pousando para mim como modelo de um quadro surreal. Temo que a dor e as pequenezas humanas virem enfeites sem os quais não posso viver.
Então, deixo livre a poesia. Liberto-a dos meus dedos.
E ela segue, a passear por meus olhos míopes, nos detalhes das imagens que ninguém vê. Ela pousa na conversa da senhora que mal sabe falar o “português dos abastardos”.
Deixo-a vingar-se de mim por não ter voz todo dia: ela pesa minha passada desajeitada, meu gesto inoportuno. Vai, por fim, viajando em mim, encontrando outras formas de existir que não literalmente. E ao morrer de cada dia, eu a acalento até que durma em meu silêncio...