Dia de chuva

A chuva veio como uma canção irrequieta

macerando as primeiras cores do dia

Soluçam as flores

como se soubessem da dissonância do grito a dilacerar-me

pois que já nem sei desvendar o pressentido mistério

e o medo trêmulo da minha vida

O vento sopra na ilha,

nostálgico

derrubando pétalas e silêncios das rosas

As andorinhas acordam o dia

chilreando nas árvores

A canção dos pingos da chuva caindo

canta lembranças onde um dia foi amor

Meu coração dissolve-se no ar afogueado e úmido,

dissolve-se nas palavras olorosas que retornam nos lírios

e nas maneiras de as dizer,

se com o peito e a dor vadia

ou como quem amou e agora cala

nas noites em que o próprio poema esconde-se

na dor que já não se sente

nos hirtos pensamentos transformados em vício

sucumbidos pela mágoa

e pelo cansaço

Pássaros cantam nas árvores trazendo a manhã translúcida

A aurora inquieta,

muda de amor,

acena para o adeus sem nome

que faz a ilusão da noite verter-se na fantasia do dia

Um anjo antigo,

de asas rutilantes,

urde as cores e os gestos que irão despir o horizonte

O sol,

ausente,

por entre as fitas das chuvas morria,

longe,

inerte,

atado a traços,

ao tempo (se é que o tempo existe),

aos ventos e à nevoa imarcescível

que assoma aos infinitos espelhos refletindo

um céu cinza pintalgado pela aragem

e pelo lirismo do vôo das aves retomando o caminho do mar

O mar incendeia-se

tecelão das vagas e de seus idílios

O mar espera

a ressumação sub-repitícia dos destinos

e da inelutável eternidade candente do amor

Cativo entre meus mundos oscilantes

e estes meus sonhos desertos

como a praia que arde e devolve ao mar meus passos inexatos

que me trouxeram até a tua ausência e o teu segredo

Entre nós dois este caudaloso rio de águas imprevisíveis

esta sombra escura,

oculta,

extensa

esta dor áspera como a memória que assoma

umedecida na maciez da argila

na primeira lágrima de orvalho que o vento derruba

para apascentar a flor

Contemplo a névoa que envolve o silêncio

e que a bruma da manhã trás envolta em grande leveza

Os pingos da chuva escorrem nos fios de seda do casulo

onde os dias fiam poesia

e as noites agonizam a ausência dos teus olhos

A meiguice e a mansidão afagam os teus cabelos

Os olhos fechados em ti refazem a nesga de luz

derramando-se por entre as frestas da janela

Me aconchego ao teu corpo

Tua nudez me abraça,

sonolenta,

indefinida

Centelha a beijar-me a língua

A beijar-me a palavra onde se esconde

a ingenuidade de te amar como se a infância fosse todo dia

e aquele menino que te beijava os seios

fosse ainda solidão quando já era ilha

nos fragmentos de um mar ancorado no sonho

[de um dia ser por inteiro