Vagabundo
Vagabundear
é verbo
que se conjuga
nas margens
(nos umbrais do desespero)
e não nos centros,
onde atuam verbos
mais importantes
e imponentes
como trabalhar,
agradar,
enquadrar,
adaptar,
sacrificar,
aparecer,
vencer.
Sou vagabundo:
não trabalho,
não agrado,
não me enquadro,
não me adapto,
não me sacrifico,
não apareço
e não venço
nunca.
Meu vagabundear
é observar a vida
e escrever
contos
e poemas
que ninguém
lê,
é visitar cemitérios
e caminhar pelas ruas
pensando,
observar o
corre-corre
dos que precisam ganhar
seu pão
e acham que são felizes
por terem um trabalho,
um salário,
um carro,
uma esposa,
um marido
e férias uma vez por ano,
é entrar num café,
fumar um cigarro
e ler o jornal
às dez da manhã
sem compromisso,
comer qualquer coisa
num boteco,
voltar para casa
e ler Bolaño,
Saramago,
e Clarice,
e escrever
até de madrugada
ouvindo
Cole Porter,
Nina Simone
e Chico Buarque.
Meu vagabundear
é estar à margem
(nas fronteiras do nada),
ser tratado como lixo,
mas não ultrapassar
nunca
o limiar
do desespero,
jamais se deixar
engolir pelo vazio
do desprezo
dos que não entendem
– dos que não sabem
que são peças
de um sistema
traiçoeiro,
que recompensa
sacrifícios
sórdidos
com felicidades
enlatadas,
que engana,
entorpece
e idiotiza,
só para produzir
o que o mercado
quer
(o mercado é seu rei).
Quase não tenho despesa,
mas a que tenho
é por minha conta
(não sou parasita de ninguém).
Trabalhei muitos anos
como peça do sistema,
fingindo ser
o que não era
para me enquadrar,
sacrificando-me
pelo trabalho,
por um sucesso
que eu não queria para mim.
Mas depois do sacrifício,
à noite,
sozinho em casa,
eu lia
e escrevia
como um desvairado,
não dormia,
e fui juntando
dinheiro,
pouco,
mas suficiente.
Hoje tenho quarenta e dois anos
e sou vagabundo
em tempo integral.
Vivo à margem.
Mas livre.