CAMÕES CANTO DÉCIMO
CAMÕES
Nó-mais, Musa, nó-mais; que a lira tenho
Destemperada, e a voz enrouquecida;
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se ascende o engenho,
Não-no dá a pátria, não que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D’ua austera, apagada e vil tristeza.
Não canto mais, não canto mais (1); tenho destemperada (desafinada) a lira, e enrouquecida a voz: e não a tenho assim por causa do cantar, mas por ver que tenho cantado a gente surda e endurecida (2). O favor com que o engenho mais se acende, não o dá a minha pátria, não! Porque está metida (absorvida) no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza (3).
(1) O Poeta está escrevendo e cantando ao mesmo tempo, porque assim se diz de todos que escrevem em verso (1,2, nota 1). (2) Esta e as seguintes estâncias, até o fim do Poema, constituem uma apóstrofe dirigida pelo Poeta ao rei D. Manuel, a quem dedicara o mesmo Poema (1, 6 e seguintes); remata assim o Poema com uma peroração, mostrando que lhe falta o ânimo para continuar a escrever, não por fadiga intelectual, mas pela desconsolação de ver que não apreciam o seu merecimento nem a sua obra. (3) A minha pátria, etc.; fig. Os grandes do reino; que estes não pensavam senão em adquirir riquezas; e esse pensamento fixo, de cobiça desesperada em que se absorviam, causava melancolia na sociedade portuguesa de então - ignorante, e que, indiferente ás ações dos homens ilustres, adormeceria lendo o Poema, em vez de se entusiasmar com a narrativa dos feitos notáveis e com a música em que eles fossem cantados (Vi, 59).
OS LUSÍADAS - POEMA ÉPICO DE LUÍS DE CAMÕES