Caminha o homem sem passado

Caminha o homem sem passado

sem memória ancestral

sem o navegar das saudades

tudo em volta é o novo

o tempo não se contrai

nem se distende

a linha do tempo interrompida

o essencial contido na alma

atemporal

no pôr do sol

no mar candente

no aroma exuberante

da flor recém-nascida

a essência que subsiste

ao engano

à palavra

e ao ato

aos navios que usamos

nas nossas guerras pessoais

tão ausentes de sonhos

tão repletos de enganos

Caminha o homem sem passado

"Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e termpo urbano. [coisas do primeiro olho!] De repente, num dia qualquer , a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o mundo fatigado se cobre de signos. [o segundo olho!]

Nunca os tinhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro modo? Não, isso que estamos vendo pela primeira vez já havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel.Advinhamos que somos de outro mundo. É lá que nasce o amor: nesse lugar onde nunca estivemos.

(Octavio Paz - no livro "O arco e a lira")

Caminha o homem na imprecisão dos dias

caminha rumo aos mares

que nunca viu

e atravessa os rios, vagarosamente,

a solidão do caminho lhe fere a alma

pela primeira vez

o múrmurio da água

apascenta seus passos

fica conhecendo a magia

que reside no singelo

de uma noite de lua cheia

enquanto a chuva cai, nova,

sempre nova aos seus olhos

a ternura acompanha

o homem sem passado

tateia o seu presente

constrói o agora

eleva estrelas a um céu plangente

e se farta de vasculhar o Universo

em busca de uma reposta que está em si

tudo o que há um dia foi Idéia

sem Verdades

se há Verdade ela está

na manhã que nasce

no riacho que corre bem cedinho

no vento tangendo a nuvem

no azul do céu

na floração das árvores e das flores

no resplandecer do belo

numa tarde anterior à sua dúvida

no ato que toca o ser: Felicidade?

na possibilidade de não fazer

e estar atento aos desejos

o que é seu e o que é do outro

na água bebida nas conchas das mãos

e as mãos pendendo ao longo do corpo,

sozinhas, com seu bocado de razão

a desviar-se do toque na flor

que se abre aos olhos tristes,

marejados,

como um céu recoberto pela névoa

e pela dúvida da beleza dos dias

que não são iguais

e têm a sua essência e o seu devir

Caminha o homem sem passado

os seus passos inúteis

e demora o seu olhar

sobre tudo aquilo que nunca viu

e ouve a música primeva

e ouve alguém a recitar o poema

e ouvindo o poema

chora