A BICHA BARBADA, UMA RECORDAÇÃO.

A BICHA BARBADA, UMA RECORDAÇÃO.

Lembranças são como pedaços de pepinos,

Às vezes comemos nos caem bens outras são indigestos;

No passado há situações engraçadas,

Outras as transformamos em engraçadas.

Tem lições aprendidas e compartilhas e

Lições que por mais que vividas são incompreendidas.

Hoje lembrei o professor Barbado entrando na sala dando “piti”,

Primeiro dia de aula falando um inglês não da Inglaterra,

Seria um inglês da Austrália?

Seria um inglês americano?

A louça é o piano do tio “teacher Carlos”

Louça? Não seria lousa?!

Seria técnica misturar o inglês com português?

Faltava nele uma munhequeira bem apertada,

Um colar cervical e talvez um colete metálico;

Postura de tia bruxa solteirona mal resolvida,

Que nada combinava com a vasta barba.

Exigia um caderno exclusivo para a sua matéria,

Proibira de escrever em seu livro de exercícios,

Teria prova escrita e também prova oral,

Ai, pronunciado com dez “is”, de quem conversasse na aula dele.

Hoje olhando na janela da recordação,

Vejo que ele não era homem suficiente para ser bicha,

Como não era didático suficiente para ser professor,

Nem muito menos tinha psicologia para pedagogo,

Era um pobre coitado que talvez fosse feliz em Londres

Recitando poesia do poeta Walter Whitman.

Uma lembrança é coisa engraçada,

Vem uma e vai outra numa velocidade de corisco.

Lembro-me da véspera da primeira prova do professor Barbudo,

Lia sentado na sala de jantar em voz baixa o texto,

Tinha que treinar muito mesmo a dicção,

Enganar a dislexia maldita noutro idioma não era algo fácil.

Entra cena o pai que me odiava e estava alcoolizado,

Não pergunta o que estava fazendo no canto da mesa,

Com o livro de registro de receita de controlados me espanca na cara,

Espanca sem abrir a boca,

O golpe proferido como o fogo que surge do fósforo, mas sem aviso.

Sem um preparo, sem um por que, apenas um golpe.

Gosto de sangue sem saber o motivo.

O voo do anjo de asas quebradas foi para o chão,

Imagino o motivo da livrada na cara,

Não há motivo, não nada de errado acontecendo.

O por que do espancamento?

Por que dele berrar que eu chore?

Tento puxar na mente um universo paralelo,

O gosto de sangue é do vampiro sedento,

Se vier a lágrima serei mais espancado.

Sou Drácula pego pela surpresa.

Chute na cara!

Sou Frankenstein que emociona pela cega.

Entro em posição fetal para me proteger.

Vejo minha mãe acendendo uma vela a Jesus.

Maldito Jesus que me acompanha na sala!

Maldita vela acesa!

Que Jesus continue morto na cruz,

Venha Lúcifer com sua lança de luz,

Lembro-me desse pedido,

Pois Jesus apenas fica ali na cruz;

Loiro filho de uma Maria que deu para um soldado romano e falou que era virgem.

Quem me garante que ela era virgem?

Quem me garante que Jose não era corno?

Um chute, dois chute...

Odeio santos entalhados que seguem na visão.

Imagino mil heresias.

Para cada chute uma heresia, pois quero que Deus jogue um raio e me leve.

Quero que Lúcifer venha e me leve

Ficar ali por quê?

Odeio mães que acendem velas aos filhos espancados pelos pais.

Sangue, dentes moles na boca, mas não choro!

Quem separa meu pai de mim, alias o covarde de mim.

Foi minha Irmã mais velha.

Saio do chão sem ver mais a cor da parede.

Peço para recolher as folhas dos livros

Mesmos sem enxergar recolho tudo

O livro virou um quebra-cabeça sem nexo

Como a surra foi sem nexo.

Vou deitar.

No outro dia cedo tenho que trabalhar.

Esperei todos dormir e imaginei como me matar.

A prova oral, dislexia, olho roxo dente mole.

Mãe que liga para diretora, maldita Dona Diretora!

Que queime no inferno Dona Diretora!

A diretora conta para o professor Bicha Barbado o fato.

Sei os nomes de todos eles, mas o tempo passou.

Tom da conversa se deu alto e todos escutaram.

Foi na porta da sala,

A mãe que no lugar de separar acendeu uma vela.

No lugar de levar o rebento ao hospital,

Contou o ocorrido para a diretora e esta ao professor Barbado.

O professor chamou a vitima a frente de todos.

Fez a prova oral.

Mostrou o caderno rasgado.

Criticou o livro com durex* colado.

Humilhou com gozação.

Brincou com o hematoma dos olhos.

Com os lábios inchados.

E assim tirei a primeira letra vermelha da minha vida.

Acabou o dia!

Ninguém se despediu

Os demais alunos se afastaram.

Nos dias seguintes apelidos mil,

A vida continuava.

Trabalho, vida em família.

Dormir cedo, medo, humilhação.

Ter que confessar o ódio ao coração

O querer se matar a todo o momento

Não teve bullying, pois a palavra não existia.

Foram anos de afastamento.

Foram anos de gozação.

Não sei quem eu mais odiei naqueles dois dias

E nem sei qual foi a pior dor por que passei

A dor física do espancamento sem motivo

Ou a dor da humilhação do professor Barbudo e dos amigos.

Maldita imagem de Jesus que me seguia na sala de jantar.

Por anos me achei maldito por não ter a coragem de me matar.

André Zanarella 25-02-2012

Obs.: fato ocorrido em 1979

Durex = Marca de fita adesiva.

André Zanarella
Enviado por André Zanarella em 09/10/2012
Reeditado em 10/10/2012
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