A noite que toca o chão

A noite que toca o chão é fria

Lá fora suspira o vento,

oculto nas sombras antigas,

oculto nas asas dos pássaros,

revela o caminho pro mar

e tece um imenso manto

sonoro

e de infinitos dedilhados

criando os escuros

e as cores que a gente não vê

e os sons que tangem à noite

no espelho fulgurante do zimbório

A noite que toca o chão contempla o silêncio

e o movimento do poeta e sua pena

Contempla o traço paralelo ao sonho do Ser

reflexo dos horizonters rubros das tardes caladas,

sonho,

sóis,

velhos retratos,

as mãos cansadas...

As mãos cansadas dissolvendo os gestos,

folheando a noite em busca de você

A noite que toca o chão é solitária

como seu reflexo incerto e a paisagem

que agora é sombra

As folhas soltas das árvores esvoaçam

carregando lembranças e sussuros de uma infância

e de uma janela que dava para o jardim bordado,

arabesco tecido em cores do ontem adormecido

quando a noite tocou o chão

A noite que toca o chão conta histórias de "era uma vez"

como quem sabe que em cada sonho

há um poeta

como quem sabe que em cada trama

há um engodo

e que em cada vida há uma sina

A noite que toca o chão avança como negro pó,

negro cinzel talhando sílabas e sons no vazio,

na ausência transparente do mar violeta de agosto

e suas areias acesas na chama da candeia da lua cheia

As estrelas caminham seus caminhos azuis,

desmancham a possibilidade do vermelho das rosas,

do branco dos lírios,

das mãos postas em prece,

do grito pressuposto e infenso

dos olhos tateando no escuro

das portas por onde derramarão meus sonhos

enquanto as horas dormem,

exaustas

A noite toca o chão,

toca os rios,

onde mergulha

e dissipa-se no silêncio do verso,

âncora de um amor,

vogal faltante da minha fala

desinência da vida sem retorno

de que são feitos os nossos passos adejantes

A noite inominada desenha figuras indistintas

e fugazes

o poema fazendo-se sob a chuva

em rascunhos entremeados de trêmulas lembranças,

perguntas palpáveis,

esparsos versos

ainda úmidos das sombras azuís das estrelas

A noite que toca o chão toca a si mesma

na carícia lenta da escuridão do mar

refletindo a molhada luz da lua

dissolvendo-se ao ritmo da tessitura das marolas

imaginadas pelo vento

e pela saudade

contida na gota d'água que cai como uma lágrima

em fogo sobre a sombra aberta da tua ausência

Na noite que toca o chão

pétalas de flores oscilam no ar incendiado

pela lua

soluça o jardim

alguém dedilha as ondas de um mar dolente

outro alguém rascunha rimas e recollhe versos

num setembro que trouxe as flores

que derramaram-se perfumando a noite,

as ilusões,

os segredos,

os folguedos

A noite menina que toca o chão

é esta nostalgia

e esta inquietude

que se revelam nas gotas de orvalho,

pequenas poesias

que dizem-se ao silêncio

oculto nas ramagens,

no infinito dos campos,

na doce recordação dos teus olhos

enquanto a noite,

solitária como este ébano que envolve a vida,

caminha para a aurora azul e lilás que flutua

sobre o canto das meninas,

sobre o riso,

e sobre o vento muito fino que amanhece

na hora morena dos aromas

e que traz de muito...

muito longe este canto triste

como o soluço nos olhos de um fim de dia