Palavras para o rei

A realidade é um vasto manicômio

desvelando os parvos e os tolos

e suas pequenas vidas

Tantas paisagens molhadas pelas chuvas

que só seus olhos não vêem

Tantos dias pulsando através das neblinas

flutuando no ar das manhãs,

escorrendo pelas últimas horas do entardecer

O perfume das flores entreondulando

nas sensações de um jardim

que não lhes consola

A alma lhes é como lento e baço rio

descontente com as pedras no caminho

Insípida sina remoer o tédio desta vida

e à inveja entregar a imensa farsa de viver

Velam as máscaras que lhes escondem

de si mesmos,

escondem seus rostos mortos

[e queima-lhes

[a sombra angustiada

Quanta melancolia têm estes reis eternos,

visto que o mundo lhes pertence

em seus delírios hediondos e tristes

Viverão milênios,

segundo as suas crenças embalsamadas,

segundo o que preconiza as suas matilhas

nas suas vozes ásperas e frias

reverberando em ecos de intolerância

A realidade é um vastissímo hospício, ó mana

onde príncipes bruxuleiam em seus estertores

de sons negros como os negros séculos

onde a espada interrompe o poema

O homem se repete, se repete...

Não vê as manhãs

lentas e cálidas que fazem os dias

nem vê o sonho

que há no casulo da borboleta

na gota de chuva que espreita o vento antigo

e na imperceptível poesia do silêncio

enquanto tange as tardes e as gentes...

Senhor,

Dai aos bardos o tempo inconsumível

e aos homens a possibilidade de amar

Amar o amor insuspeito,

incólume

e intenso

como se no fim das nossas ruas

nos esperasse a latência de um mar

neste início de primavera

e nesta lua crescente

que pende deste céu que não alcanço

e tropeço nas nuvens a cada instante

e me encanto ao avistar da janela as estrelas

dependuradas num céu de ébano passível,

também,

de um amor...

o meu amor, preclaro e infantil,

despido e casto

Alguém me disse outro dia: tens o olhar entristecido

Eu respondi: no princípio era uma solidão muito leve,

muito calma,

depois a solidão tornou-se prenúncio

sem data para passar,

sem limite pra doer,

impulso,

entranhas,

crisálida,

silêncio

Um grande sono se faz, estrepitoso

vigiado pelo vento e pela sombra

da memória dissonante de vidas passadas

e da primeira manhã

onde tudo era premissa,

onde a luz ofuscava a visão,

onde o amor não conhecia o mudo medo

e os sentidos inquietos

onde tudo era devir

Senhor,

dai aos bardos um retrato em branco e preto

e um poema, singelo que seja, mas um poema

uma dedicatória de amor

que enlace a noite e sua impermanência

e lavra-lhes o caminho em direção ao sol

da manhã que ainda dorme