DANTE E VIRGÍLIO. TRAIÇÃO.

Virgílio e Dante estão no círculo onde ficam os traidores. São quatro tipos de traidores que ali penam. Existe a Caina onde está o Caim bíblico que matou o irmão, outros há vagando pelo mundo, traidores de seu sangue; na Antenora, encontra-se Antenor, de Troia, que possibilitou os Gregos a sua cidade, como fazem muitos políticos de hoje, traindo suas cidadanias; na Ptoloméia, fica Ptolomeu, que traiu Pompeu, encarna o traidor de amigos; na Judeca, de Judas, o traidor de Jesus, os traidores dos bons e caridosos.

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Se usasse rimas ásperas, rouquenhas,

Próprias do poço lôbrego e tristonho,

Que do inferno sustém as outras penhas,

Melhor ideia do lugar medonho

Dera; mas tal vantagem me falece.

O meu conceito, pois, tímido exponho.

É árdua empresa, em que o ânimo esmorece

O centro descrever do mundo inteiro:

Para empenho infantil ser não parece.

Das Musas se ajudar poder fagueiro,

Como a Anfião em Tebas o mostraram,

Fiel serei dizendo e verdadeiro.

Ó malfadada turba, a quem tocaram

Deste abismo os castigos, bruto gado

Sendo, fados melhores te aguardaram.

Descidos nós ao poço negregado

Das plantas muito abaixo do gigante,

O alto muro mirava-lhe espantado,

Quando ouvi: “Tem cuidado, ó caminhante!

Não calques de irmãos teus desventurados

As frontes”. Eu, voltando-me, adiante

E sob os pés, de um lago vi gelados

Os planos tanto, que os dizer podia,

Não de água, de cristal, porém, formados.

Do Danúbio a corrente não seria

Tanto em Áustria no inverno enrijecida,

Nem do Tanais, na zona sempre fria.

Do lago sobre a face empedernida

Caísse ou Tambernich ou Pietrana:

Não fora ao peso enorme combalida.

Qual rã, que no paul coaxando, ufana

Um pouco emerge, enquanto a camponesa

Sonhando está que a respigar se afana:

Tais gemiam as sombra na frieza

Té a cintura lívidas, batendo,

36 Como a cegonha, os queixos com presteza.

Para o seio a cabeça lhes pendendo,

Do frio a boca indícios claros dava,

39 Nos olhos a tristeza está-se vendo.

Quando atentei no quanto em roda estava,

Duas vi aos meus pés, em tal abraço,

42 Que, travado, o cabelo se enleava.

“Quem sois que os peitos nesse estreito laço

Apertais?” — perguntei. Então, voltando

45 Os colos para trás, um curto espaço

Me encararam; porém dos olhos quando

Lhes brotavam as lágrimas, a neve

48 Cerrou-os entre os cílios as coalhando.

Nunca dois lenhos tanto unidos teve

Cavilha: eles, de irados, se investiram,

51 Quais capros, que a marrar o furor leve.

Terceiro, a quem, geladas lhe caíram

As orelhas, com rosto baixo fala:

54 “Por que teus olhos sôfregos nos miram?

“O par desejas conhecer, que cala?

Próprio lhes fora e ao genitor Alberto

57 O vale, onde o Bisênzio faz escala.

“De um só ventre nasceram; tu, por certo,

Não acharás mais di’nos em Caína,

60 De ter de gelo o vulto seu coberto,

“Nem esse, a quem de Artus destra assassina

De um bote o peito e a sombra transpassara;

63 Nem Focácia e o que a fronte agora inclina,

“A vista me tolhendo, e se chamara

Mascheroni Sassol, bem conhecido:

66 Se és Toscano, esse nome te bastara.

“Fique, por vozes escusar, sabido

Que Pazzi eu sou e que, em Carlin chegando,

69 Serei por menos criminoso havido”.

Mil outros via roxos tiritando:

Desde então de arrepios sou tomado

72 Ante gélidos vaus, este lembrando,

E o centro demandando, em que firmado

Do universo gravita todo o peso,

75 Trêmulo havia a treva eterna entrado,

Eis, sem querer, da sorte ou por desprezo,

Entre tantas cabeças caminhando,

78 A face de um calquei no gelo preso.

“Por que me pisas?” reclamou chorando,

“De Monte Aperti ao feito por vingança

81 Inda me estás desta arte molestando?

“Mestre, espera-me aqui” — disse — “Me lança

Em dúvida este mau: solvê-la quero.

84 Eu depois correrei, se houver tardança”.

Parou; e ao pecador falei, que fero,

Duras blasfêmias proferia agora:

87 “Quem és tu, que me increpas tão severo?”

“E tu mesmo quem és, que na Antenora”

Tornou — “dessa arte as faces me espezinhas?

90 Um vivo, certo, menos cru me fora”.

“Sou vivo e posso entre as memórias minhas

Do nome teu apregoar a fama”

93 Respondi — “se te aprazem louvaminhas”.

“Só quer o olvido quem te fala” — exclama

“Vai-te! De sobra já me estás molesto.

96 Aqui não cabe da lisonja a trama”.

Travei da nuca ao pecador infesto

E disse: — “Ou perderás todo o cabelo,

99 Ou quem tu foste me declara presto!”

“Mil vezes podes arrancar-me o pêlo,

De ver-me a face não terás o gosto

102 E de saber qual foi meu nome e apelo”.

As mãos lhe havia no cabelo posto;

Da guedelha uma parte arrepelara:

105 Ganindo ele abaixava sempre o rosto,

Quando outro brada: “Ó, Boca, isso não pára?

Pois os queixos bater não te é bastante?

108 Já lates! Que demônio em ti dispara?”

“Não mais, ímpio traidor” — no mesmo instante

Respondo — “exijo; o que de ti stou vendo

111 Contarei por te ser mais infamante”.

“Vai! Se saíres deste abismo horrendo,

Quanto queiras refere, do apressado,

114 Que de língua assim foi, não te esquecendo.

“Ouro chora, que a França lhe há doado.

Eu vi — podes dizer — Boso Duera

117 De outros muitos no gelo acompanhado.

“Se perguntarem quem aqui mais era,

Olha e terás ao lado Beccaria,

120 A quem Florença degolar fizera.

“Gian del Soldanier, há pouco eu via

Além com Ganellon e Tribaldello.

123 Que abriu Faenza, enquanto se dormia”.

Deixâmo-lo; mas súbito de gelo

Postos em furna vi dois condenados:

126 Cabeça de uma a de outra era cabelo.

Como a pão se agarrando os esfaimados,

Por cima um no outro os dentes aferrava

129 Onde a cerviz e o crânio estão ligados.

Qual Tideu, que a dentadas lacerava

De Menalipo a fronte enraivecido,

132 Ele o cérebro e os ossos mastigava.

“Tu, que, de ódio tão sevo possuído,

Te encarniças feroce no inimigo,

135 “Dize — exclamo — por que foi produzido.

“Se eu souber que a justiça está contigo

E houver da culpa e réu conhecimento,

No mundo a compensar-te ora me obrigo,

139 Se não perder a língua o movimento”.

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11. Anfião, foi auxiliado pelas Musas na edificação dos muros de Tebas. — 27. Tanais, o rio Don, na Rússia. — 55-60. O par etc, filhos de Alberto degli Alberti, os quais brigaram e se mataram reciprocamente. — 61. Nem esse Mordrec, filho do rei Artur, morto pelo pai. — 63. Focaia, dei Cancellieri matou alguns parentes do partido inimigo. — 65. Mascheroni Sassuol, florentino, assassinou traiçoeiramente um seu primo. — 68. Pazzi, Comicion dei Pazzi matou o seu primo Ubertino. — Carlin, Carlino dei Pazzi traiu os seus companheiros, entregando várias fortalezas aos florentinos Negros. — 88. Antenora, onde são punidos os traidores da pátria, de Antenor, troiano, que favoreceu os gregos que sitiavam Tróia. — 106. Boca, Bocca degli Abati, na batalha de Montaperti (1260) causou a derrota dos florentinos, passando ao inimigo. — 116. Boso Duera, traiu o rei Manfredo, por ter recebido dinheiro de Carlos d’Anjou. — 119. Beccaria, de Pavia, legado pontifício na Toscana, foi decapitado pelos florentinos, na suposição de ter favorecido os gibelinos. — 121. Gian del Soldanier, gibelino, que em 1266 chefiou uma rebelião em Florença. — 122. Ganellon, Gano de Mogunça, traidor de Carlos Magno. — Tribaldello, faentino, traiu a sua cidade natal Faenza.

DANTE ALIGHIERI
Enviado por Celso Panza em 20/09/2012
Código do texto: T3892034
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