Metade sonho
As estrelas tremeluzem,
dolentes,
sob o sussurro da brisa que vem do mar
despertando lentamente entre dois silêncios,
entoando cantigas de ausência
levando consigo o que fui,
levando meu dia claro,
papéis, sonho e meu riso
Plange o passado com sua voz de saudade
Onde está tudo aquilo que o tempo me tirou
transmudando em fantasia e soluço
o retrato que me devolvia ao ontem,
os meus livros de páginas branquinhas
aonde lia os meus sonhos
à luz pungente da tarde,
os olhos negros de Pingo?
O gesto apressado,
muito meu,
de fitar os crepúsculos dos dias
aonde as flores choram
sob a chuva que enleia os brocados da tarde
envolvendo a vida em luz purpúrea,
embebido
na memória,
nas estórias
dos poetas,
na perenidade dos versos
nas estrelas,
na eternidade da lua
na palavra que escreve
o teu nome na aragem
A palavra é só som e signo
espalhados pelo vento
sobre os jardins silentes
se não embebe a emoção
e a encharca,
e a diz em voz ingênua e pueril,
dramática,
como quem diz o imenso "adeus",
como quem responde "vem"
Vem,
que os meus sonhos fazem
dos segundos incognoscíveis momentos
gotejando sobre o ondeante aroma da noite
e seus véus de névoas de linho rendados,
de ilhas que fogem embriagadas,
desta amplidão que ressoa os versos
nus que te ofereço
como a um círio iluminando
o teu silêncio...
enquanto a chuva cai
sobre as pétalas das flores que choram
murmurantes
como o suspiro do mar incontentado
como o ângelus murmurado pelo vento
nas praias desertas,
nas folhas da janela insone
como os versos de enternecida poesia
com aromas de madrugadas
e braços nus,
pele macia da ilusão,
sonho marchetado pela adaga da vida
talhando lua e estrela
na solidão da manhã tendendo a azul
que delicamente desponta
por entre retalhos de névoas e de nuvens
úmidas,
como úmidos são os olhos que não podem mais
olhar para o mar inconcluso
feito de "era uma vez",
dos papéis de seda,
de infância
e de poesia,
a mais flamante,
colhida na saudade dos teus olhos
esquecidos nas estrelas
das noites esculpidas em barro
e rimas
Suavemente a noite derrama-se sobre o poema
com seus véus de musselina
O dia não teve a menor pressa
de se fazer olvido,
passado de segredos tão sós
como as palavras antes de pousarem
em tessitura nos versos
do meu monólogo fremente
O ocaso inscreve seu traço negro
apagando flores e espinhos na terra
desvelando a lua no céu
como se fosse uma rosa branca
brincando de solidão
nas noites em que sou ilha,
pequeno mundo
inquieto,
rumores de poesia
metade sonho infantil,
metade o infinito aberto
sobre um átimo de vida...
que vem no vento brando e frio
deste final de inverno
molhando os lírios de orvalho,
sombras
e aliciante nostalgia
posta no ar de pelúcia
de um mundo de faz de conta
que só existe em mim
assim como a rosa só existe
para determinado jardim,
olente adorno para as letras
com as quais eu tento esquecer
a outra metade do sonho