fuga
houve então de nos exigirem cegos
quando havia tempos já não víamos
em tempo de meninos de tardes descalças
e visão arregalada de não ver
ouvíamos por cheiros
sem saber que víamos, sim
o que todos juravam não existir
depois houve de inventarem pontes
onde talvez nem água corresse
onde abismo nenhum
pudesse nos engolir as noites
e os passos
e os tropeços
e os clarões da lua
mas, ah, que aquele filete d'água
que nem havia
era imenso e capaz de ninar
o brilho inteiro de uma lua
se se pudesse enxergar
se se pudesse correr
e chegar a tempo
de ainda acreditá-lo ali
à noite
antes de raiar a vida
antes das máquinas gritarem
dos pilares se erguerem
e das pedras fugirem dali
pra um outro sonho cego de meninos
- que o mundo ao redor jurava -
não seriam capazes nunca de enxergar
E quanta razão!
saberíamos talvez já tarde
ou talvez nunca
que não seríamos mesmo capazes
nunca de enxergar e entender
que o que conta
que o que faz valer a pena a lida
e os dias
e os sóis
e as luas
olhos não podem mesmo ver
pois que ouvíamos por cheiros
e sentíamos por noites
e enxergávamos por dentro
por isso víamos
que havia, perto dali
um lugar outro onde um filete d'água ainda corria
fugindo de pontes
e de olhos que não mereciam ver
em silêncio, fugia
e levava a lua inteira
dentro de si