Língua dos outros

Vou confessar:

adoro a gente que fala bom português

gente boa que encontro pela rua.

São feirantes, vendedores ambulantes,

que em sua faina gritam as ofertas

fartas de falas que nos favorecem.

Passageiros que nos ônibus se apertam

expressam a situação em palavrões.

Encanta a fala dos analfabetos

que constrói a sua própria ortofonia.

É bonito o português bem relaxado

do colóquio dos casais apaixonados,

da criança birrenta, da criança

que manipula o mundo das palavras

criando mundos a nos deixar sem fala.

Que bom ouvir o português bacana

dessa gente que o usa para amar

para comprar o pão de cada dia

para dizer bobagens sem ter hora

para contar anedotas saborosas

sem ligar para a foice castradora

dos defensores de uma língua estagnada.

Tão nem aí para a Senhora Normativa

e vão seguindo com a língua viva

mandando ao diabo as colocações pronominais

que querem encher de ênclise e mesóclise

até mesmo as conversas mais banais

fogem dos contorcionismos da regência

tortuosa que ninguém sabe usar

e se alguém usa é só para esnobar...

muitas vezes detonam concordâncias

pelo simples prazer de discordar

defenestram os parônimos e homônimos

metem os pés pelas mãos na ortografia

matam a pau a ignota norma culta

e se lambuzam com o português da vida

Português bom é isso que se fala

nos becos, nos batuques, nos botecos,

nos encontros, nos confrontos, em todo canto.

Que canseira que dá para viver

com a língua dos outros, emprestada,

que não salta os muros escolares.

Professores da língua de Camões

têm a sina de seguir na contramão

no inglório ofício de ensinar

a falar quem já sabe falar!