O HORIZONTAL E O VERTICAL
“... homens que caminham do tamanho de fiapos de lã...”. “Meu triste eu”, poema. Do livro “Uivo e outros poemas”, Allen Ginsberg, 1956.
O sol bebe o orvalho nos rituais do luminoso amanhecer.
Há pouco, a cidade dormia em sua placidez de asfalto.
Pessoas e veículos, na cotidiana algaravia,
começam a se movimentar.
É segunda-feira.
A manhã desvela a burca nevoenta e libera as pestanas.
Os olhos recém-acesos são lumes no inverno brando
da megalópole.
O metrô passa cuspindo a pressa dos trabalhadores
e os fios energizados soltam chispas sobre os trilhos.
Os edifícios esgueiram-se, postados um rente ao outro.
São espécimes de argamassa, luzes e vidros colossais,
contendores no jogo de força bruta – ringue
de fazer engordar o dinheiro.
Esparramam-se nos campos urbanos da aldeia global.
Máquinas e operários despejam o concreto quase líquido
nos quadros de aço e madeira e vão construindo
a ossatura de mais um gigante.
Há o rescaldo ecológico de pouca inteligência
a favor dos humanos,
que se mexem e remexem numa lerdeza pacienciosa.
Ocupam o exíguo espaço horizontal
e o espigão se alonga numa torre de babel.
Os uniformes proletários originalmente em bando
ao entrar nos portões,
fungam brutalidade/presteza em grupos
sobre ferros e argamassa
para afeitar abrigos de cama e mesa,
na urgência do prazo contratual.
Confronte, ao rés-do-chão, um grupo de mendigos e desocupados
faz uma festa anárquica sob a marquise do edifício:
doses de álcool nas veias (crack e marijuana nas ventas)
aplacam a fome.
Tornam o entorno admiravelmente humano e perigoso.
O grupo de jovens atravessa a rua à larga de passos e gestos,
atemorizados.
Logo mais, no pátio da escola, teremos a tolerância das descobertas
do viço juvenil, tão convidativo como as camas fofas do apart de defronte.
Um jovem casal à janela do prédio madruga
em roupas íntimas e troca carícias.
O senhor maduro caminha ereto e apressado
dando curso ao passeio matinal.
Soa a sirene escolar.
Em sala de aula, o professor de literatura
recita um poema de Vinicius de Moraes,
transmutando o momento.
A vida se cumpre nos seus vários matizes
de humanidades.
Tracejam-se destinos.
O edifício continua crescendo.
De repente, do alto, esborracha-se na calçada
um corpo.
Há mais de mês o cinto de segurança estava com defeito,
denunciam os obreiros.
A ambulância chega, com toda a estridência ululante
de rainha déspota
absoluta e arbitrária como a morte.
São Paulo, 22ª Bienal Internacional do Livro, 21º andar do Brasília Small Town, em 13/08/2012.
– Do livro O AMAR É FÓSFORO, 2012.
http://www.recantodasletras.com.br/poesias/3851650