O gosto da liberdade
Sozinha em casa,
recostada no sofá,
com uma xícara de café
fumegando
ao alcance da mão,
Dona Maria folheia
seu caderno de poemas.
Passa as páginas
sem pressa,
sorrindo,
os olhos brilhando
de alegria,
até que,
de repente,
sente
uma inspiração
e escreve.
Qualquer um que a visse,
certamente pensaria:
aqui está uma mulher feliz.
O marido se diverte
com os amigos
numa casa de putas.
Ela sabe disso,
o sem-vergonha
não lhe esconde nada,
e ainda diz que
se ela reclamar,
enche-lhe a cara de porrada.
Ela não reclama.
Em trinta anos de casamento,
Dona Maria nunca pôde estudar
nem sair com as amigas
para jogar buraco ou
pontinho,
tomar um vinho
e conversar.
Foi aceitando isso
e outras coisas mais,
calando-se,
fingindo,
sendo
o que os pais
lhe diziam ser
o que tinha que ser,
sem explicar por quê.
– A vida é assim, minha filha.
E de tanto ser
o que tinha que ser,
Dona Maria
foi se acostumando
a uma rotina
de existir
quase de árvore:
tirando do solo
seco
da casa
o seu parco
sustento,
e dando o que,
por destino,
tem que dar:
lavar,
passar,
cozinhar,
limpar.
Mas no íntimo
profundo
de sua existência,
Dona Maria
cultiva
um pequeno
prazer de viver,
um espaço
só dela
– quarto
minúsculo,
mas que
para ela
é tudo:
seus poemas.
Escreve dois
ou três por dia,
sozinha,
tomando café,
sem pensar
nos problemas
do cotidiano,
na sua vida exterior,
de árvore
– puro deleite.
E é maravilhoso ver
como esse gozo
da criação
consegue
atravessar
camadas tão
duras
de sonhos
não realizados,
romper
essa crosta
seca
e espessa
de vida
não vivida,
e acender
em seu rosto
enrugado
o sorriso
iluminado
que agora eu vejo
e sinto
– o gosto da liberdade.