Mentiras 

          Ai quem me dera uma feliz mentira
            que fosse uma verdade para mim!
                               - J. DANTAS

 
Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?
 
Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!
 
Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito...
 
Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!

 
 
 
                     Não Ser
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
- Mantos rotos de estátuas mutiladas!
 
Ah! Arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! Poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!
 
Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
 
Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de ouro de uma flor aberta!...

 
 
 
             Noite de Saudade
A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...
 
Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a noite a soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!
 
Por que é assim tão ´scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!
 
Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho! 

 
 
  
                   Nostalgia
Nesse país de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p´las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!
 
Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o reino de que eu sou infanta!
 
Ó meu país de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!
 
Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

 
 
 
                O Maior Bem
Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente,
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda a gente.
 
Mesmo a beijar-me a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Pousa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...
 
Mas que me importa a mim que me não queiras,
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo,
 
Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?

 
                         
 
              O meu Orgulho
Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não lembrar! Em tardes dolorosas
Lembro-me que fui a primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!
 
As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas... Quem soubera
Por que tudo passou e foi quimera,
E por que os muros velhos não dão rosas!
 
São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim: "Não me merecem..."
E já não fico tão abandonada!
 
Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha
E também é nobreza não ter nada!

 
 
 
             O meu Soneto
Em atitudes e em ritmos fleugmáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...
 
E os meus olhos serenos, enigmáticos
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos...
 
As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d´amor trazem de rastros...
 
E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!...

 
 
 
              O Nosso Mundo
Eu bebo a vida, a vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Pousando em ti o meu olhar eterno
Como pousam as folhas sobre os lagos...
 
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!
 
A vida, meu amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas, hemos de bebê-la!
 
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, amor! ... As nossas bocas juntas!...

 
 
 
              O teu Olhar
Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
 
Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;
 
Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!
 
E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!
 

 
 
                     Os meus Versos
Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
 
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
 
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
 
Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...

 
 
 
                     Para quê?!
Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
 
Até o amor nos mente, essa canção
Que nosso peito ri `a gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...
 
Beijos d´amor? Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
 
Só acredita neles quem é louca!
Beijos d´amor que vão de boca em boca,
Como pobres que

 
 
 
             Passeio no Campo
Meu amor! Meu amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
 
Eu tenho, amor, a cinta esbelta e fina...
Pele dourada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo!
 
Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoulas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...
 
E à volta, amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras...

 
 
 
Perdi meus fantásticos castelos
Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!
 
Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!
 
Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...
 
Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...

 
 
 
             Que Importa?...
Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão,
Como bate no peito à outra gente.
 
Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de desejo ou de emoção,
Enquanto as asas louras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.
 
Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte,
Toda ela é riso, e é frescura e graça!
 
Nela refresca a boca um só instante...
Que importa?... Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes... quando passa?...
vão de porta em porta!...

 
 
 
                         Quem?...
Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?
 
Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...
 
És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...
 
És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

 
 
 
                 Quem Sabe?...
                                     Ao Ângelo
Queria tanto saber porque sou eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber porque seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!
 
Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma, que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!
 
A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!
 
Quem sabe se este anseio de eternidade,
A tropeçar na sombra, é a verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?
 

 
 
                   Rústica
Ser a moça mais linda do povoado,
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.
 
Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...
 
Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "terra da verdade"...
 
Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de princesa,
E todos os meus reinos de ansiedade.

 
 
 
                  Sem Palavras
Brancas, suaves mãos de irmã
Que são mais doces que as das rainhas,
Hão de pousar em tuas mãos, as minhas
Numa carícia transcendente e vã.
 
E a tua boca a divinal manhã
Que diz as frases com que me acarinhas,
Há de pousar nas dolorosas linhas
Da minha boca purpurina e sã.
 
Meus olhos hão de olhar teus olhos tristes;
Só eles te dirão que tu existes
Dentro de mim num riso d’alvorada!
 
E nunca se amará ninguém melhor;
Tu calando de mim o teu amor,
Sem que eu nunca do meu te diga nada!...
 

 
 
                 Ser Poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
 
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
 
É ter fome, é ter sede de infinito!
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
 
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

 
 
 
                 Supremo Enleio
Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!
 
Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta...
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!
 
Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!
 
E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda...

 
 
 
                     Toledo
Diluído numa taça de ouro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!
O sol a rir... Viv´alma... Não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer...
 
As tuas mãos tateiam-me a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!
 
Cerro um pouco o olhar, onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo
- Um grande amor é sempre grave e triste.
 
Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo...
Uma torre ergue ao céu um grito agudo...
Tua boca desfolha-me num beijo...
 

 
 
                   Tortura
Tirar dentro do peito a emoção,
A lúcida verdade, o sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...
 
Sonhar um verso d´alto pensamento,
E puro como um ritmo d´oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...
 
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
 
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!

 
 
 
Trazes-me em tuas Mãos de Vitorioso
Trazes-me em tuas mãos de vitorioso
Todos os bens que a vida me negou,
E todo um roseiral, a abrir, glorioso
Que a solitária estrada perfumou.
 
Neste meio-dia límpido, radioso,
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me pousou.
 
O silêncio, ao redor, é uma asa quieta...
E a tua boca que sorri e anseia,
Lembra um cálix de tulipa entreaberta...
 
Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo...
E o meu corpo ondulante de sereia
Dorme em teus braços másculos de vândalo...

 
 
 
                         Velhinha
Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
"Já ela é velha! Como o tempo passa!..."
 
Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de ouro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!
 
Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente...
Já murmuro orações... falo sozinha...
 
E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos...

 
 
 
                       Versos
Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma...
 
Versos!... Sei lá! Um verso é o teu olhar,
Um verso é o teu sorriso e os de Dante
Eram o teu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!
 
Meus versos!... Sei eu lá também que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...
 
Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês...

 
 
 
                       Volúpia
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te meu corpo prometido à morte!
 
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
 
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
 
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...  

 
                                      Fim...



Florbela Espanca
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 25/08/2012
Reeditado em 25/08/2012
Código do texto: T3849312
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