Cravos Vermelhos
Bocas rubras de chama a palpitar
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!
 
Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d’esculturais sorrisos?!
 
...Bem sei vosso segredo... Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores-do-mal,
Disse-me agora: “Uma manhã, o sol
 
O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga...”


 
 
              Crisântemos
Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.


Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d´amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!


Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais...


Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais!

 

 
 
                     Dantes...
Quando ia passear contigo ao campo,
Tu ias sempre a rir e a cantar;
E lembra-me até uma cotovia
Que um dia se calou pra te escutar,

Enquanto eu apanhava malmequeres
Que nos cumprimentavam da estrada,
Que, depois esfolhavas, impiedoso,
Na eterna pergunta: muito ou nada?

Tu beijavas as f’ridas carminadas
Que, em meus dedos, faziam os espinhos
Das rosas que coravam, vergonhosas,
Zangadas, de nos ver assim sozinhos.

Fitávamos as nuvens do espaço.
Que imensas! Que bonitas e que estranhas!
E ficávamos horas a pensar
Se seriam castelos ou montanhas...

Que adoráveis canções de mimo e graça
Os teus lábios proferiam a cantar!
Tão mimosas, que as relvas da campina
Ficavam pensativas a sonhar...

As fontes murmuravam docemente,
Os teus beijos cantavam namorados,
Cintilavam as pedras do caminho,
Sorriam as flores pelos valados...

À hora sonhadora do poente
Tinham maiores palpitações os ninhos.
Lembras-te? Íamos lavar as mãos,
Vermelhas das amoras dos caminhos.

Eu brincava a correr atrás de ti;
Uma sombra perseguindo um clarão...
E no seio da noite, os nossos passos
Pareciam encher de sol a 'scuridão!

Olhando uma estrela, tu dizias:
Olha a chuva de prata que nos cobre!
Depois, numa expressão amarga e branda
Recitavas, chorando, António Nobre!...

Eu tinha medo, um medo atroz infindo
De passear pelos campos a tal hora,
Mas, olhando os teus olhos cintilantes,
A noite semelhava uma aurora!

E já passaram esses áureos tempos,
E já fugiu a nossa mocidade!...
Mas quando penso nesses dias lindos,
Que tortura, minh’alma e que saudade!

 
 
 
              Desafio
      Ela
“Ó luar que lindo és,
Luar branco de Janeiro!
Não há luar como tu,

Nem amor como o primeiro.”
Ele  
Deixa-me rir, ó Maria!
Qual é para ti o primeiro?!
Chamas o mesmo ao segundo,
Chamas o mesmo ao terceiro!

Ela
O que Deus disse uma vez
Na minh’alma já é velho;
Vai pedir ao Senhor Cura
Que o leia no Evangelho!

………………….............

Uma voz ouve-se ao longe
Que sobe alto, desgarrada:
“Por muito amar, Madalena,
No céu serás perdoada!”

 
 
 
      Duas Quadras
Não sei se tens reparado
Quando passeia, o luar
Para sempre à tua porta
E encosta-se a chorar;
E eu que passo também
Na minha mágoa a cismar
Paro junto dele, e ficamos
Abraçados a chorar!

 
 
 
                      Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
 
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...
 
Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...
 
Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!...

 
 
 
             Filhos
        À Exma. Sra. Glória Lomba
Filhos são as nossas almas
Desabrochadas em flores;
Filhos, estrelas caídas
No fundo das nossas dores!


Filhos, aves que chilreiam
No ninho do nosso amor,
Mensageiros da felicidade
Mandados pelo Senhor!

Filhos, sonhos adorados,
Beijos que nascem de risos;
Sol que aquenta e dá luz
E se desfaz em sorrisos!

Em todo o peito bendito
Criado pelo bom Deus,
Há uma alma de mãe
Que sofre p’los filhos seus!

Filhos! Na su’alma casta,
A nossa alma revive…
Eu sofro pelas saudades
Dos filhos que nunca tive!…

 
 
 
              Folhas de Rosa
Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...
 
E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume de outrora
Flutua em volta delas, docemente...
 
Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga
 
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
 
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...
 
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...
 
 
 
              Meu Portugal
Meu Portugal querido, minha terra
De risos e quimeras e canções
Tens dentro em ti, esse teu peito encerra,
Tudo que faz bater os corações!

 
Tens o fado. A canção triste e bendita
Que todos cantam pela vida fora;
O fado que dá vida e que palpita
Na calma da guitarra onde mora!

 
Tu tens também a embriaguês suave
Dos campos, da paisagem ao sol poente,
E esse sol é como um canto d’ave
Que expira à beira-mar, suavemente…

 
Tu tens, ó Pátria minha, as raparigas
Mais frescas, mais gentis do orbe imenso,
Tens os beijos, os risos, as cantigas
De seus lábios de sangue!… Às vezes, penso

 
Que tu és, Pátria minha, branca fada
Boa e linda que Deus sonhou um dia,
Para lançar no mundo, ó Pátria amada
A beleza eterna, a arte, a poesia!…

 
 
 
                 No Hospital
                                          À Théa
Na vasta enfermaria ela repoisa
Tão branca como a orla do lençol.
Gorjeia a sua voz ternos queixumes
Como no bosque à noite o rouxinol.
 
É delicada e triste. O seu corpito
Tem o perfume casto da verbena.
Não são mais brancas as magnólias brancas
Que a sua boca tão branca e pequena.
 
Oiço dizer: - Seu rosto faz sonhar!
Serão pétalas de rosa ou de luar?
Talvez a neve que chorou o Inverno...
 
Mas vendo-a assim tão branca, penso eu:
É um astro cansado, que do céu
Veio repousar nas trevas dum inferno!

 
 
 
           No Minho
Casitas brancas do Minho
Onde guardam os tesouros,
As fadas d’olhos azuis
E lindos cabelos loiros.
 
Filtros de beijos em flor,
Corações de namoradas,
Nas casas brancas do Minho
Guardam ciosas as fadas.

 
 
 
                 Noite Trágica
O Pavor e a Angústia andam dançando...
Um sino grita endechas de poentes...
Na meia-noite d’hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!...
 
Tenho medo da noite!... Padre nosso
Que estais no céu... O que minh’alma teme!
Tenho medo da noite!... Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!
 
Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!...
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria Dor parece...
 
Ó noite imensa, ó noite do Calvário
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ‘squece!

       
 
 
           Noites da Minha Terra
Anda o luar espalhando fios de prata
Pelos campos fora… Lírios a flux
Lança o azul do céu…e a terra grata
Transforma em mil perfumes toda a luz!

As estrelas cadentes vão ’spalhando
Lirios brancos também… agora a terra
Parece noiva linda, que sonhando
Caminha pro altar, além na serra…

É meia-noite agora. Tudo quieto
Na noite branda, dorme…Entreaberto
Vai esfolhando o lírio do luar

As alvas folhas, que cobrindo o céu,
E todo o mar e toda a terra, um véu
Branco, de noiva, lembra a palpitar!…

 

 
 
         Noivado Estranho
O Luar branco, um riso de Jesus,
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz…

 
O Luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada…


O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co’a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d’amor o pobre monge…

 
O Luar empalidece de cansado…
E a Noite é uma flor de laranjeira,
A perfumar o místico noivado!…

 
 
       
                Num Postal
Luar! Lírio branco que se esfolha...
Neve, que do céu, anda perdida,
Asas leves d’anjo, que pairando,
Reza pela terra adormecida...

 
 
 
                   Nunca Mais!
Ó castos sonhos meus! Ó mágicas visões!
Quimeras cor de sol de fúlgidos lampejos!
Dolentes devaneios! Cetíneas ilusões!
Bocas que foram minhas florescendo beijos!

 
Vinde beijar-me a fronte ao menos um instante,
Que eu sinta esse calor, esse perfume terno;
Vivo a chorar a porta aonde outrora o Dante
Deixou toda a esp’rança ao penetrar o inferno!

 
Vinde sorrir-me ainda! Hei-de morrer contente
Cantando uma canção alegre, doidamente,
À luz desse sorriso, ó fugitivos ais!

 
Vinde beijar-me a boca ungir-me de saudade
Ó sonhos cor de sol da minha mocidade!
Cala-te lá destino!… “Ó Nunca, nunca mais!…”

 
 
 
                     O Espectro
Anda um triste fantasma atrás de mim
Segue-me os passos sempre! Aonde eu for,
Lá vai comigo…E é sempre, sempre assim
Como um fiel cão seguindo o seu Senhor!

 
Tem o verde dos sonhos transcendentes,
A ternura bem roxa das verbenas,
A ironia purpúrea dos poentes,
E tem também a cor das minhas penas!

 
Ri sempre quando eu choro, e se me deito,
Lá vai ele deitar-se ao pé do leito,
Embora eu lhe suplique: “Faz-me a graça

De me deixares uma hora ser feliz!
Deixa-me em paz!…” Mas ele, sempre diz:
“Não te posso deixar, sou a Desgraça!”

 

 
 
                     O Fado
Corre a noite, de manso num murmúrio,
Abre a rosa bendita do luar... 
Soluçam ais estranhos de guitarra... 
Oiço, ao longe, não sei que voz chorar...

 
Há um repoiso imenso em toda a terra, 
Parece a própria noite a escutar... 
E o canto continua mais profundo 
Num anseio de saudade a palpitar!...

 
É o fado. A canção das violetas: 
Almas de tristes, almas de poetas, 
Pra quem a vida foi uma agonia!

 
Minha doce canção dos deserdados, 
Meu fado que alivias desgraçados, 
Bendito sejas tu! Ave Maria!...

 
 
 
              O meu Alentejo
Meio-dia: O sol a prumo cai ardente,
Dourando tudo. Ondeiam nos trigais
D’ouro fulvo, de leve... docemente...
As papoilas sangrentas, sensuais...
 
Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros,
Mostram por entre o ouro das espigas
Os perfis delicados e trigueiros...
 
Tudo é tranquilo, e casto, e sonhador...
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: Onde há pintor,
 
Onde há artista de saber profundo,
Que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste mundo?!
 
 
 
                    Oração
Ó Deus, senhor da terra, omnipotente,
Senhor do vasto mar! Senhor do céu!
Atentei esta prece humilde e crente,
Ouvi-me por piedade, Senhor meu!

Olhai por todos que amam sua terra,
Guiai aqueles que amam Portugal
Protegei os que mandam pela guerra
A defender o seu torrão natal!

Lançai o vosso olhar de piedade
Por todos os que arrastam ‘ma saudade
Pela pátria distante, muito além!…

Consolai, ó meu Deus, os orfãozinhos,
As mães, as noivas e os que têm ninhos
Despedaçados pela guerra. Amém.

       
 
 
         Os teus Olhos
O céu azul, não era
Dessa cor, antigamente;
era branco como um lírio,
ou como uma estrela cadente.

Um dia, fez Deus uns olhos

tão azuis como esses teus,
que olharam admirados

a taça branca dos céus.

Quando sentiu esse olhar:
“Que doçura que primor”!
Disse o céu, e ciumento,

tornou-se da mesma cor!

 
 
       
                   Paisagem
Uns bezerritos bebem lentamente
Na tranquila levada do moinho.
Perpassa nos seus olhos, vagamente,
A sombra duma alma cor do linho!
 
Junto deles um par. Naturalmente
Namorados ou noivos. De mansinho
Soltam frases d’amor...e docemente
Uma criança canta no caminho!
 
Um trecho de paisagem campesina,
Uma tela suave, pequenina,
Um pedaço de terra sem igual!
 
Oh, abre-me em teu seio a sepultura,
Minha terra d’amor e de ventura,
Ó meu amado e lindo Portugal!
 
 
 
             Poder da Graça
Altiva e perfumada em cetinoso trem
Passeia uma mundana à luz da tarde quente,
O seu olhar gelado onde se lê desdém
Passeia pela rua, altivo e insolente.

 
Para ninguém abaixa o orgulhoso olhar;
Passa o luxo da alta em luminoso traço;
Parece não ouvir da rua o murmurar
Que o seu olhar altivo é sempre triste e baço.

 
Nem o rir da criança ou o sorrir da luz
Dão vida àquela sombra altiva que seduz
A multidão absorta em roda, a murmurar…

 
Uma mendiga passa. É’ma beleza ideal!
Nasceu do seu olhar o céu de Portugal!
………………………………..............
Abaixa então a rica o luminoso olhar!

 

 
 
             Poetas
Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
 
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
 
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.
 
E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma para sentir
A dos poetas também!
 
 
 
      Que Diferença!
Quando passas a meu lado,
E que olhas para mim,
Tornas-te da cor da rosa,
E eu da cor do jasmim.
 
Vê tu que expressões dif’rentes
Da nossa mesma ansiedade:
A cor da rosa é despeito,
A palidez é saudade!
 
 
 
                   Saudade
És a filha dileta da noss’alma
Da noss’alma de sonho e de tristeza,
Andas de roxo sempre, sempre calma
Doce filha da gente portuguesa!

Em toda a terra do meu Portugal
Te sinto e vejo, toda suavidade
Como nas folhas tristes dum missal
Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!…

Andas nos olhos negros, magoados
Das frescas raparigas. Namorados
Conhecem-te também, meu doce ralo!

Também te trago n’alma dentro em mim,
E trazendo-te sempre, sempre assim,
É bem a pátria qu’rida que eu embalo!

 
 
 
      Sentimento Longe
Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.
 
Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado...
Digo para mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?
 

 
 
                Só
Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca, na rua
A vejo chorar sozinha!…

As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas...

 
Só a triste, coitadinha…
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha…

 
Eu chego então à janela:
E fico a olhar para a lua…
E fico a chorar com ela!…

 

 
 
              Sonhos
Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir...
Que se sonhasse a chorar...
 
Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca... um lamento...
 
Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte
 
Despedaçar esses laços!...
...É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!
 
 
 
                      Sonhos
Sonhei que era a tua amante querida,
A tua amante feliz e invejada;
Sonhei que tinha uma casita branca
À beira dum regato edificada…

 
Tu vinha ver-me, misteriosamente,
A horas mortas quando a terra é monge
Que reza. Eu sentia, doidamente,

Bater o coração quando de longe
 
Te ouvia os passos. E anelante
Estava nos teus braços num instante,
Fitando com amor os olhos teus!

 
E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:
Acordei com os olhos rasos d’água,
Ouvindo a tua voz num longo adeus!
 

       
 
 
      Súplica
Digo pra mim
Quando ele passa:
Ave-Maria
Cheia de graça!
 
E quando ainda
Mal posso vê-lo:
Bendito Deus
Como ele é belo!
 
Embalada num sonho aurifulgente
Sei apenas que sonho vagamente,
Ao avistar, amor, teus olhos belos,
 
Em castelãs altivas, medievais,
Que choram às janelas ogivais,
Perdidas em românticos castelos!
 
 
 
                      Súplica
Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.
 
O meu colo é arminho branco imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!
 
Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d’astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!
 
Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente!...
 
Vem para mim, amor... Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!...
 
 
 
                Triste Destino
Quando às vezes o mar soluça tristemente
A praia abre-lhe os braços e deixa-o a gemer;
Embala-o com amor, de leve, docemente,
E canta-lhe cantigas p’ra adormecer!

 
Quando o Outono leva a folha rendilhada,
O vestido real da branda Primavera,
O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada
A pequenina folha, essa ideal quimera!

 
O sol, agonizante e quase moribundo,
Estende os braços nus, alegre, para o mundo
Que o faz amortalhar em púrpura de lenda!

 
O sol, a folha, o mar tudo é feliz! Mas eu
Busco a mortalha minha até no alto céu!
E nem a cruz p’ra mim tem braços que m’estenda!

 
       
 
              Visões da Febre
Doente. Sinto-me com febre e com delírio
Enche-se o quarto de fantasmas. ‘ma visão

desenha-se ante mim tão branca como um lírio
Debruça-se de leve… Estranha aparição!

 
É uma mulher de sonho e suavidade
Como a doce magnólia florindo ao sol poente
E disse-me baixinho: “Eu me chamo Saudade,
E venho pra levar-te o coração doente!

 
Não sofrerás mais; serás fria como o gelo;
Neste mundo de infâmia o que é que importa sê-lo
Nunca tu chorarás por tudo mais que vejas!”

 
E abriu-me o meu seio; tirou-me o coração
Despedaçado já sem uma palpitação,
Beijou-me e disse “Adeus!” E eu: “Bendita sejas!…”

 

       
 
    Verdades Cruéis
Acreditar em mulheres
É coisa que ninguém faz;
Tudo quanto amor constrói
A inconstância desfaz.
 
Hoje amam, amanhã ‘squecem,
Ora dores, ora alegrias;
E o seu eternamente
Dura sempre uns oito dias!...
 
 
 
               Vozes do Mar
Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...
 
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
 
Tens cantos d’epopéias? Tens anseios
D’amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
 
Donde vem essa voz, ó mar amigo?
...Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!
 
 
 
                        Vulcões
Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.
 
No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal
Tudo é quente lá dentro... e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!
 
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões...
 
Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente! 
 
                               Fim...



Florbela Espanca
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 25/08/2012
Reeditado em 25/08/2012
Código do texto: T3848668
Classificação de conteúdo: seguro