Alquimia verbal em Baudelaire: sugestão poética nos sentidos "in loco" das Correspondances (1855)

A exuberância temática constrasta na genialidade e simplicidade incríveis à figura de Baudelaire, porque espraia o simbolismo, aprofunda as cenas da modernidade, ergue-se das rotulações de mero ébrio parasiense, capacitando-o à percepção do novo "sensorium", de que tão bem nos descreve Martin Barbero para nossos dias quanto ao fulcro e ressonância da poeticidade baudelaireana.

E é nessa busca do plural em Baudelaire, não nos polpemos esforços de análise para sentir e ver nas entrelinhas de sua escritura poética, seja em Corrrespondences ou Folhas do mal, aquela pulsão lírica criativa que a todos nós encanta ainda hoje.

Esse universos de sensações dos perfumes frescos, de sinestesias de doces em oboés ou verdes nas pradarias exalam sentidos outros inéditos a seduzir a alma e a mente de conciliar tanto a miséria das estruturas sociais à maldade humana incorrigível, quanto paradoxais fugas no inconsciente (nosso inigmático mundo interior ou nossa caixa preta de desejos freudianos ou extases da sombra jungiana), os picos de meditação e anseios de mistificação do ego em um mundo cada vez carente e irresoluto de automação e tecnologias que não conseguiram domesticar o espírito dos homens - céleres ou céticos de valores...

A cada um, de diferentes meios e performances, Baudelaire surpreende-nos a espichar um bocado de frases, versos, sentidos, entrelinhas, entrelugares não vistos ou obscuros, ilícitos ou necessários à evasão de quem cansou de ser o que se é, ou que não se coadona às vontades de poder do sistema, ou deseja estar lá onde o povo está. Permite-nos sonhar o irracional, delongar em incognoscível emoção, procurar sugestões ou imagens de que a infância nos legou ou a juventude penetrou, ainda poder criativa e criticamente peneirar ou selecionar bricolé de correspondences, sem as quais a vida se empobreceria e a poesia nos pareceria mera tolice e a vida mera deriva nos oceanos da existência paradoxal e labiríntica.

Por isso, maravilho-me diante de "confusas palavras;/ o homem ali passa por entre florestas de símbolos/ que o observam com olhares familiares." Há uma provocação do objeto sobre o homem-poeta diante da natureza que se coloca dentro e fora do desejo humano em suas implicações mais sutis e estranhas... talvez conhecidas e suspirantes... "como longos ecos... em vasta (...) noite e claridade,/ [como] os perfumes, as cores, os sons se correspondem" [correspondessem]. Essa percepção impressinista e simbolista do universo psicológico e cultural construído são traduzidos por imagens e sensações como primitivo fóssil ancestral de todos nos capturado no "âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso", ritual confuso e indômito da mente em sinapses ousadas na liricidade de nossas memórias coletivas qual "transporte do espírito e dos sentidos", cansados e/ou sequiosos de novidade e sensibilidades fora de cadeias do esquema sistêmico - porque cada cultura nos inebriaria a vontade, o coração, a alma com "transportes de sentidos" do milagre de viver, sonhar e ousar ... quando muitos já estão a morrer na sequidão ou deserto de suas frustrações e obliteração de seus desejos mais secretos.

Vejo Baudelaire, endividado, por isso desejoso de evadir-se de si e do mundo que o prende. Vai ao encontro dos distantes, do débito de multidão, da carência das ruas e vilas, pernoita os campos de seu perímetro existencial, onde o burguês se iguala talvez ou afugenta-se ao popular ou esquiva-se e depois ver-se mergulhado na periferia de tantos desesperançosos e marginalizados exílios, no lusco-fosco da vida parisiente, esboço de um mundo que se rende à moderidade e os traços de um passado e tradição que se esvaem irrremediavelmente... E Baudelaire sobrevive com sua imortalidade lírica, testemunho tenso e denso desses mundo em colapso e em transformação.

FONTE: CAMPEDELLI, Samira Yousseff. Literatura. história & texto . vol. 2. Saraiva: 2004, p. 268-70.