[Muralhas: Contrapontos Noturnos]

[Muralhas: Contrapontos Noturnos]

[Noctivagações — pois, “ ódio é a ira em conserva” – Myra Y Lopez]

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Quase amanhece... e volto. Sorvo ar frio das ruas cinzentas da aurora já anunciada. Ermo é o meu olhar não-adormentado, um pedinte a percorrer, molambento, os mistérios das janelas silentes. Quase mastigo a minha espessa saliva, tão viscosa é a minha boca de vários copos de cerveja. Outra vez, eu estou só, e trafego por estas velhas ruas molhadas do meu Desterro. Errei pelos desertos escuros da insônia, vaguei pelos labirintos da memória. E agora, cansado, volto para casa ainda com as marcas dessa noite insone — do embate do meu corpo com a sensualidade molhada do corpo da puta com quem estive, restam-me, apenas, um odor acre, alguns vergões, e nada mais!

Minha cabeça regurgita uma polifonia de pensamentos que transfundem Passado, Presente e Futuro. À mente cansada de mentar, assomam cercas violadas, águas desviadas, estradas fechadas, e olhos, mil olhos ruins sobre a minha fragilidade! Ressurgem aqueles olhares, vivos como se fossem de ainda ontem; atiçam em mim ódios inultos, rancores surdos, guardados em conserva, em recâmaras de ódio... Sinto as garras daquela gente sobre a minha infância pobre; eu, órfão de pai... Repovoam a minha mente aquelas mágoas distantes — essas pessoas nem sabem o perigo que correm! Elas ainda estão lá, mas também estão aqui, estão sempre onde eu estou; e agora, eu tenho de voltar; tenho de abrir-lhes a jugular, e derramar-lhes o sangue lentamente... sobre a terra que me roubaram!

Restou, resta o vinco dos desejos não cumpridos em meu ser — está ainda comigo! Vagueiam, no que resta de noite, os cães vadios a chafurdar no lixo ainda não recolhido, os bêbados, os perdidos habitantes das ruas. Já cansada, a prostituta oferece o seu corpo apenas cristãomente ausentado de alma, mas agitado pelos ruídos de deuses pagãos, e ainda tenta insopitados desejos tardios... Humanas formas de ser, de estar... só têm a própria crueza! Ponta fina como punhal é a inveja que sinto da liberdade, do nada ser destas criaturas!

Contrapontos: lembro-me muito bem: em criança, o mundo era grande, as formas oníricas, grotescas, e a saída era a luz brilhante na boca da caverna escura do sonho ruim! Mas agora, no meu carro, a frágil segurança do momento transporta-me, o ronco do motor parece distante; coisas de agora refervem em músicas: BB King suffers The Thrill is Gone… Chicago Blues! Ah, Janis Joplin still cries in the night, Maybe…

Uma saída seria esta — na mente, os espaços infinitos, as reações nucleares nas estrelas, a luz intensa após uma explosão nuclear — a energia das terríveis forças nucleares que tanto me seduzem — pudesse, eu explodiria o mundo, mas queria ficar vivo para me explodir numa olímpica gargalhada! Mas agora, nas ruas, ínfima partícula, o meu corpo vagueia a esmo...

A velha fazenda — na noite antiga o medo engendrava em mim a ânsia de ser puro, ser santo... Mas, e hoje, qual a diferença de ontem? Nem demônio, nem santo, só esta vazia descrença — sou órfão de um Deus... morto, extinto! Que outra [clara] noção poderia subsistir além das camadas de educação formal, sobrepostas àquele mundo do sertão?! Mas a velha fazenda ainda está lá, parametrizando as coisas!

Assim permanecem também as manhãs de rara luminosidade, as minhas ruas de pedras escuras, o langoroso apito que por vezes trazia alegrias, mas também cadenciava os soluços das despedidas, na distância do trem que tomava da cidade! Ah, eis a impossível regressão ao ventre da urbe que me gerou!

O Passado vige sempre; mas, é claro: eu vivo o Agora! E neste instante, a rua brilha, dura como o aço, e de novo, assaltam-me os ódios antigos, a ânsia de matar, e bem no fundo, e escuro medo de morrer! Sim, doentio, eu sofro os calafrios, o medo, e os mesmos tremores de Raskolnikov; prefiguro já o maldito inspetor que não me dá trégua — estou, "beirando à hipocondria"! Mas o crime, fruto daqueles inultos rancores, eu ainda não cometi; donde então o temor? E esta sensação de ser o quê... Caça?

Ou seria o espectro de Kafka a me rondar? Sim, é verdade! É ele! Eu estou mesmo uma enorme barata... Um nada! Um verdadeiro trapo... A angústia... a mensagem presa, contida entre as muralhas, e ainda que escapasse, seria só a mensagem de um morto! Isto me soa como uma sentença! Mas eu estou vivo — Platão errou: o meu corpo não é a minha sepultura!

Ainda há um resto de noite, mas, daqui a pouco, como sempre, o sol lançará fora os medos, e então, eu serei outro! Mas por enquanto, deixo ser... Deixo ir meus pensamentos vagantes por essas ruas trevosas. E, enquanto o céu se tinge de vermelho, eu, esmoído dessa luta, desse embate contra essas muralhas fantásticas, retorno a casa, lentamente...

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[Penas do Desterro, 07 de Outubro de 1997]

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Do meu inédito livrinho "Cavalos da Noite", ilustrado por Paula Baggio

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 06/08/2012
Código do texto: T3817003
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