Vivi demais. Passei do ponto. Devia ter descido na primeira estação.
Lombriga, diarréias, dor de dente. Sobrevivi.
Usei véu branco em missa de galo. Confessei, comunguei,
dominei a gula da hóstia. Engasguei na hora das rezas,
me ungi de óleos e cinzas e bênçãos e pragas. E sobrevivi.
Casei, descasei, pari. No parto seria um bom ponto. Não desci.
 
Trabalhei feito burro de carga. Apanhei na cara e não merecia.
Bati muito, muito, o punho em espelhos,
Espremi espinhas, ajeitei sobrancelha, empinei o nariz.
Entortei o pescoço, olhei muito de lado, mas nunca me vi.
Simulei cirurgias, engoli fantasias, fingi muito que ria.
Bati muito a cabeça tentando aprender o que não entendia.
 
Trair? Sim, traí. Traí sonhos, metas, traçados,
mas traí aos bocados, pois que nem percebi.
Viajei em janelas, senti o vento na cara, e o vento doía.
Tantos caminhos me levaram pra onde eu deveria.
Nenhum deles me trouxe a estação que eu queria.
 
Cobri as vergonhas com chantily pra ver se delas saía algum doce
Vibrei pouco. Mais sacudi que fundi.
Me confundi em tantas pernas que me faltaram pernas pra fugir.
Me desmedi dos pés à cabeça e não me acudi.
 
Senti frio de dois casacos, sucumbi de cansaço. Amareleci.
Me banhei em gotas salgadas de lágrimas geladas
que nem todos os copos estancaram o sangue dos poros que verti.
E sobrevivi.
 
Transgredi todas as regras que os vícios me permitiram
Agredi pulmões, estômago, vértebras.
Ofereci todas as vísceras aos males que me serviram.
Acolhi de bom grado tudo o que me esvaísse.
Me despedi todos os dias, enquanto seguia,
dos lugares onde estive, de pessoas, olhares, afetos,
num anseio secreto que esse trem colidisse.
E sobrevivi.
 
Sobre-vivi mais do que pude.
 
Vivi demais. Devia ter descido na primeira estação
antes que o mal da esperança se instalasse,
antes que eu acreditasse no que viria.
Em qualquer desses momentos morreria
querendo viver.
Descrer é o pior dos tormentos e descri, do tanto que vi.
Passei do ponto.
Devia ter descido na vertigem da passagem dos trilhos.
Não veria o quão sem sentido tem sido esse estranho viajar.
Pensar é o remédio e o veneno. Tédio infinito.
Até acabar.
 


Alice Gomes
Enviado por Alice Gomes em 31/07/2012
Código do texto: T3805686
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